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Foto do escritorHatsuo Fukuda

ÓDIO


Nada mais contemporâneo que o ódio e a raiva. Bem-vindo ao admirável mundo velho.


Imagem promocional.


O ódio, um dos maiores leitmotivs da humanidade, dá o tom ao título brasileiro do filme The Searchers, de John Ford: Rastros de Ódio. The Searchers está em 12.º lugar na lista dos cem melhores filmes americanos dos cem anos do American Film Institute. Em primeiro lugar está Citizen Kane, e em último, Ben-Hur. Como toda lista, ela é totalmente discutível (talvez abominável), mas não creio que haja algum amante de cinema que não coloque Ford e vários de seus filmes entre os maiores de todos os tempos, não somente do cinema americano, mas de todo o mundo.


A história todos conhecem. Ethan retorna à casa de seu irmão após oito anos. Ele veste um capote do Exército Confederado, e um chapelão enorme cobre seu rosto sombrio. Uma pista do motivo de sua ausência nos dá o olhar amoroso da cunhada Martha, na cena da chegada. Ela obviamente ama Ethan. Um amor proibido. Guerreiros comanches atacam a fazenda do irmão e sequestram as duas sobrinhas, Debbie e Lucy. Ethan sai em busca das garotas, jornada que alguns comparam à Odisseia. A comparação não é gratuita. O filme é seminal, como a Odisseia, e inspirou gerações de cineastas. Cenas e personagens serão reencontrados em Scorsese, David Lean (Lawrence da Arábia), George Lucas (Star Wars o cita em várias ocasiões), Wim Wenders (Paris, Texas). Cenas e diálogos tornaram-se cult e pop.


A reputação de John Wayne, que já estava solidamente estabelecida (como ator), tornou-se lenda. Conta-se que assistindo a filmagem de Red River, de Howard Hawks, ao ver a performance de Wayne, Ford teria dito: “Não sabia que o son of bitch sabia atuar”. Até então, para Ford, ele seria “apenas” um homem bonito, com uma impressionante presença cênica e carisma cinematográfico.


E como sabia atuar. Ethan é um homem propelido a ódio. Desde o início, sabemos que o objetivo dele não é recuperar a sobrinha Debbie (que talvez seja sua filha); para ele, sequestrada e provavelmente estuprada por índios, portanto contaminada, a menina deveria ser morta. O ódio racial impregna sua mente. Seu companheiro de jornada, Martin, em parte índio, é objeto de constante desprezo.


Este é o desprezível herói do filme.


No entanto, a plateia segue mesmerizada, incapaz de prever até onde Ethan irá. E também porque todos compreendem que somente um homem como ele teria a resiliência e força capaz de atingir o objetivo. Alguns dizem que Ethan é uma personificação ambulante do enorme custo da repressão psíquica (the american way). Sua ambivalência deriva também dos significados simbólicos presentes no filme: os valores familiares e a solidão do desbravador do novo mundo; a modernidade que traz novas necessidades e torna um homem como Ethan dispensável; a integridade profunda que o deixou um pouco aquém do ato irremediável e sem perdão (apesar de todas as abominações que cometeu). Ele ainda consegue conviver consigo mesmo, e com a solidão dos que sabem que não tem mais lugar naquele mundo. Aqui e ali surgem flashs de sua humanidade.


A grandeza do filme - e a sua atualidade permanente – deriva dos temas que persegue: o ódio racial, a sexualidade reprimida, a raiva e a violência descontrolada. Lembra alguma coisa do mundo em que vivemos?


Ford – aqui vai um spoiler – nos dá uma alternativa ao final. Afinal, seu ofício era vender ingressos de filmes, o que não seria possível sem um happy end (mas não para Ethan). As cenas finais tornaram-se objeto de adoração aos cinéfilos do mundo, com todos os significados que carrega, e são objeto de análises acadêmicas e críticas especializadas. Ethan, com toda a sua fortaleza, está desconsolado. Seus olhos e o lendário andar de John Wayne não deixam dúvida. Ele não faz parte daquela comunidade sentimental. Os fãs analisam a cena, fotograma a fotograma. Você a encontrará em posters em bares onde motoqueiros comem seus hamburgueres e tomam sua cerveja. Ali começa a jornada dos solitários que construíram o sonho americano e dele foram alijados, pois no mundo civilizado não há lugar para eles.


The Searchers (Rastros de Ódio) está na Apple TV, Youtube, HBO Max, Prime Video, etc. Acho melhor comprar. Provavelmente você vai assistir várias vezes durante a vida. A confecção de listas dos melhores é uma tarefa abominável para mim, que nunca consegui fazer a minha própria lista dos dez melhores. Em todo caso, The Searchers estaria na lista. Em primeiro? Talvez.

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