top of page
Foto do escritorHatsuo Fukuda

A MORTE E A MORTE DE MARIA BUENO

A santinha popular curitibana é homenageada pelo Museu Alfredo Andersen com uma releitura de sua imagem, por seis artistas + Andersen

Maria Bueno, obra de Alfredo Andersen



Na certidão consta que era uma moça cafuza, de 30 anos. Outros cronistas dizem-na parda. Ela morava na Rua Saldanha Marinho, esquina com a Rua Visconde de Nácar, numa casinha de madeira que hoje não existe mais. Cafuza ou parda, na linguagem peculiar da terra, significa que era uma moça de pele azeitonada, onde se misturaram brancos, negros, indígenas. Enfim, uma moça da terra.


Alguns a dizem marafona, mulher de vida alegre; outros, lavadeira de profissão. Em uma crônica publicada na Gazeta do Povo, não assinada, lê-se que na inquirição das testemunhas – nenhuma delas tendo presenciado o crime – divagou-se sobre os antecedentes da vítima.


Conta-se que um moleque teria levado a ela um recado para se encontrar com o namorado em um bosque onde foi encontrada. Mas talvez fosse um encontro marcado desde sempre entre os amantes, não se sabe. Sabe-se que o corpo foi encontrado, a cabeça quase separada do corpo, as mãos com marcas fundas de faca (o que significa que houve resistência), no dia seguinte, atraindo a multidão habitual de curiosos.


Teria acontecido assim: seu namorado, Inácio José Diniz, um anspeçada (uma espécie de cabo) que servia no quartel do 8.º Regimento de Cavalaria, aquartelado ali na Praça Ruy Barbosa, teria fugido de seu plantão, corrido até o ponto de encontro, ali onde hoje é a Rua Vicente Machado (suponho que um pouco abaixo de onde hoje é a Justiça do Trabalho), onde havia na época um bosque, matado a moça e retornado ao quartel, onde jogou no poço sua gandola azul manchada de sangue e o punhal. Acusado do crime, negou. Mas logo foi retirado do poço o material, a gandola com seu número de soldado nas costas.


Julgado, foi absolvido pelo corpo de jurados, todos homens, por 11 a 1. A promotoria recorreu, e preso o anspeçada aguardou o resultado do julgamento.


Então, o primeiro milagre – assim visto pelo seu fã-clube. O General Gumercindo ocupou a cidade de Curitiba com sua tropa. Primeira providência, esvaziar as cadeias. O anspeçada foi libertado e juntou-se à tropa revolucionária. O valente pica-pau transformou-se em honorável maragato. A revolução não é um baile de quinze anos, já disse um outro revolucionário, este bem sucedido.


Como estava escrito nas estrelas, em seguida um comerciante foi se queixar ao General Gumercindo do roubo de uma mula e assassinato de um homem na Estrada do Bacacheri (outros dizem Pilarzinho). O caudilho reuniu a tropa em duas fileiras no pátio do quartel (que era o mesmo onde servira o anspeçada) e os dois ladrões foram reconhecidos pelo comerciante. Interrogados na frente da tropa pelo general, confessaram. A justiça revolucionária se fez, imediata. Um deles correu e foi fuzilado na fuga; outro, Inácio José, ajoelhou-se e pediu clemência ao general, mas a ordem foi cumprida. Gumercindo era um gaúcho honrado, estava fazendo uma revolução, não uma pilhagem.


No local onde foi assassinada, ergueu-se uma cruz, que, alguns anos depois, foi levada ao Cemitério Municipal, onde está o seu túmulo. É fácil de localizá-lo: logo na entrada do cemitério, à direita de quem entra, quase encostado ao muro que dá frente à Praça do Skate, você encontrará uma multidão de ex-votos, bilhetes e flores próximos ao túmulo. Um retrato foi colocado por um devoto. Ela está estranhamente parecida com as imagens que se fazem de Nossa Senhora; sua pele branqueou. Como não se tem notícia que lavadeiras em Curitiba, em 1893, freqüentassem estúdios de fotografia (se é que existissem, naquela cidadezinha), e não havendo Toulouse-Lautrecs para retratar marafonas ou mulheres de vida alegre, tais imagens não devem guardar fidelidade à original. Mas isso pouco importa aos fiéis, que vêem na imagem antes um símbolo daquilo que acreditam.


Uma tarde passei em frente à casa onde ela teria morado, na Rua Saldanha Marinho, cheio de minhas pobres preocupações mundanas. Na esquina com a Alameda Cabral, topei com o poeta. Parei para conversar. Em certo momento, uma borboleta pousou no ombro dele (não no meu). Observando-a, comovido, lembrei do poverello de Assis e sua oração:


“Ó mestre, fazei com que eu procure mais consolar que ser consolado;

Compreender, que ser compreendido;

Amar, que ser amado.

Pois é dando que se recebe,

É perdoando que se é perdoado,

E é morrendo que se vive

Para a vida eterna.”


No dia do aniversário de sua morte, 29 de janeiro, uma romaria de devotos comparece ao Cemitério Municipal para fazer suas preces e pedidos. Francisco de Assis entenderia; afinal, ele também era um poverello. Não foi ele que disse que morrendo se ganha a vida eterna?


No coração de seus fiéis, ela vive.


SERVIÇO – O Museu Alfredo Andersen acaba de inaugurar exposição “Maria Bueno e tantas outras”, com releituras de seis artistas sobre a sua imagem. Andersen também a retratou, e serviu de guia para as visões dos artistas. Não perca. O Major S. Izidoro Pereira escreveu um livro, Maria Bueno (História – Romance – Agiografia) do qual retirei as informações que constam neste artigo. Na primeira parte, História, são citados inúmeros documentos originais, inclusive o inquérito e o processo judicial. Este, infelizmente, perdeu-se, para consternação dos historiadores e do pessoal do Museu da Justiça, que o teria guardado com o cuidado necessário, se não tivesse sido criado depois do desaparecimento do processo.

Comentários


bottom of page