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BOCA MALDITA



A maior contribuição de Curitiba à civilização brasileira está morrendo.


Imagem de Hatsuo Fukuda



Se existe um local que pode ser considerado o símbolo de Curitiba é a Boca Maldita. Trata-se de uma quadra da cidade, na Rua XV de Novembro, entre a Rua Ermelino de Leão e a Rua Ébano Pereira (naquele trecho foi batizada de Avenida Luiz Xavier). Tradicional ponto de encontro dos curitibanos, por onde todos passavam, regularmente, para um café e a prática do tradicional esporte de falar mal dos governos, hoje perdeu muito do glamour.


Um engraxate, há muito estabelecido no local, sintetizou a situação: “Pois é, doutor. Não tá havendo reposição.” Os velhos frequentadores se dirigem ao cemitério de elefantes, e os novos há muito não passam por lá. Aliás, os jovens hoje usam tênis, dispensando a graxa e, com isso, os comentários dos engraxates (o principal motivo para sentar naquelas cadeiras).


A Boca Maldita era o que era devido a vários fatores. Era o centro da cidade, quando a cidade vivia em função do centro. Lá estavam os cinemas da cidade (Cine Avenida, Cine Ópera, Cine Palácio), e vários outros nas quadras próximas. Um pouco adiante, na Voluntários da Pátria, o Cine Curitiba, um poeira onde os garotos se reuniam e trocavam, compravam e vendiam gibis, aguardando a sessão dupla de filmes B. Onde hoje é a entrada das Lojas Americanas, na Rua Cândido Lopes, funcionava o Cine Arlequim. Próximos, o Cine Lido, o Cine Rivoli e o Cine São João. Na Praça Osório, o cine Plaza. O Cine Palácio se mudou para a Voluntários, rebatizado de Astor, e para alegria das ratazanas de cinema, criou uma sessão da meia-noite. Ir ao cinema (sessões às 2, 4, 6, 8 e 10 horas), e depois tomar um café ou um sorvete na Boca Maldita era um ato natural. Experiência totalmente diferente de ir ao cinema no shopping. Caminhar pelas ruas, em grupo, para ver os cartazes dos filmes e das próximas atrações, tomar um café e sentar em um banco da rua era uma atividade comum, nos anos sessenta.


Curitiba era efetivamente o centro político do Estado; hoje, o centro político se deslocou para o interior, e a maior parte dos políticos são de fora, e mantém laços tênues com a cidade, ou não têm laço nenhum. Da sacada do Braz Hotel, Getúlio se dirigiu aos seus eleitores, nos anos 50; ali José Richa reuniu a população pedindo eleições diretas – e em seguida os participantes se dirigiam aos bares da vizinhança para comentar os acontecimentos. Com muita cerveja. Poucos políticos curitibanos ainda mantém o hábito de frequentar a Boca e conversar com seus eleitores, como era comum até os anos sessenta e começo dos setenta. Jaime Lerner tomando chope no Maneco; Ratinho (pai) em uma roda no Stuart; Requião e o Dr. Francisco Cunha Pereira Filho, o todo poderoso capo da Gazeta do Povo, tomando café na Boca Maldita; ninguém estranhava. Aliás, os políticos hoje na maioria vociferam para as redes sociais. Quebrou-se o diálogo proporcionado pela Boca Maldita entre o eleitor e seus representantes, talvez uma das maiores contribuições de Curitiba à civilização brasileira (Qual cidade brasileira teve algo semelhante?).


O comércio da cidade ficava no centro, e hoje se deslocou para os shoppings ou para a Ali Express. Ao contrário de Nova Iorque, onde ainda hoje se vê grã-finas de salto alto caminhando com sacolas na 5.ª Avenida (a Tiffanys continua lá, uma loja de rua). Lojinhas simples, que vendem celulares, no centro da cidade, com medo de assaltos, mantém em estoque apenas os mais simples, que não interessam aos ladrões. O abandono se vê nos anúncios de aluga-se ou vende-se por todo o centro.



Imagens de Hatsuo Fukuda


E tudo isso contribuiu para a degradação da cidade, traduzida em roubos, furtos, homeless em quantidade cada vez maior, que tornam o ato de passear e conversar na rua uma aventura quase proibida. O comércio fecha as portas. Não há segurança. Os carrinhos da PM e da Guarda Municipal que circulam pela Rua XV, no trecho que vai da Rua Presidente Faria à Praça Osório são para inglês ver. Nenhuma medida efetiva é tomada. Prender bandidos, nem pensar. Há pouco a placa comemorativa da Confeitaria das Famílias foi furtada, em plena Rua XV. Quem pode não passa por lá.


Da Boca Maldita pouco sobrou. Alguns dinossauros mantém a tradição. O Bar do Cachorro, próximo, continua servindo chope e sanduíche de pernil para seus fregueses. Na Praça Osório, o Bar Stuart prossegue, impávido, indiferente ao tempo, com o sorteio de petiscos. À frente, o Bar do Maneco, na Alameda Cabral, que era um tradicional ponto de encontro de bêbados respeitáveis (bota respeitável nisso), transformou-se em um restaurante in, graças, segundo dizem, a um BBB que o tornou conhecido para a patuleia. A comida do Maneco, que era conhecida somente pelos bêbados da casa, hoje tornou-se gourmet. Os bêbados diurnos que lá faziam ponto tiveram que sair na eterna busca do botequim perfeito.

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