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Foto do escritorHatsuo Fukuda

DESCENDO A LADEIRA

De como se lançou um dos melhores LPs da música brasileira, Moraes Moreira e muito mais...


Pra libertar meu coração, eu quero muito mais que o som da marcha lenta/Eu quero o bloco do prazer que a multidão comenta

Com a morte de Moraes Moreira, os jornais contaram a história de seu primeiro encontro com João Gilberto. Os Novos Baianos eram um bando de hippies que foram morar em comunidade em um sítio, fumando maconha, jogando futebol e fazendo música. Um dia, apareceu um homem de terno e gravata, batendo na porta. Os garotos ficaram alvoroçados, imaginando que era a polícia. Era João Gilberto. Que era um antigo apreciador da erva, já nos anos 50, quando ainda não era moda e não havia chegado aos jovens de classe média. João apresentou aos roqueiros (que adoravam Jimmy Hendrix) o seu vasto repertório musical e a sua maneira inusitada de tocar violão e isso acabou por mudar toda a trajetória do grupo.


Terá sido assim tão dramático e decisivo o encontro? Teria sido realmente um turning point? Não havia já um sentimento, uma afinidade com a tradição por parte deles? Afinal, eles eram da Bahia, e se apresentavam como os Novos Baianos, o que quer dizer alguma coisa, por mais roqueiros que fossem. Pouco importa, esta é a versão que se conta, e como já dizia o velho John Ford, “entre o fato e a lenda, publique-se a lenda”, uma lição permanente aos jornalistas e escritores.

Dessa amizade nasceu Acabou Chorare, um fabuloso LP que foi ouvido em estado de deslumbramento e transe por todos naqueles remotos anos 70, de triste memória, não fossem jóias como esta. Devo ter tido notícia do disco – não me perguntem detalhes, não lembro – através do meu amigo Júlio Covello, fotógrafo e amante de música. Eu o ouvi pela primeira vez em sua casa (ele ainda morava com seus pais, na Rua Dr. Faivre).


Preta pretinha virou hino nacional. “Eu ia lhe chamar, enquanto corria a barca” era um retrato da minha solidão adolescente, desesperançada, mas suavizada pela poesia.


Em “Acabou Chorare” eles gravaram Brasil Pandeiro, de Assis Valente, que eu não conhecia.

1940, ano em que a canção foi escrita, foi um ano sombrio. Os exércitos de Hitler eram vitoriosos em toda a Europa Ocidental. É de 4 de junho o discurso famoso de Churchill, um tour de force de oratória, até hoje lido com admiração (we shall never surrender), que arrancou lágrimas de muitos deputados, quando foi pronunciado na Câmara dos Comuns. No Brasil, o popular Getúlio acompanhava os ventos que sopravam da Alemanha, e discursou avisando que “Passou a época dos liberalismos imprevidentes.” O liberal e imprevidente Estadão havia sido fechado, em março. Júlio de Mesquita Filho, seu diretor, estava no exílio. Só em 1945 ele retomaria o jornalão e o país a democracia.


Carmen Miranda retornara dos Estados Unidos para uma breve temporada no Brasil, vinda de Nova Iorque. No feriado de 7 de setembro reuniu os seus amigos compositores para ouvir novas músicas. Braguinha mostrou a ela a arrebatadora Onde o céu azul é mais azul, que exaltava, além do céu azul que é mais azul, as palmeiras, os seringais, verdes pinheirais, jangadeiros, boiadeiros, as brancas praias, etc. Um tédio.


Brasil Pandeiro também foi rejeitada. Ruy Castro, em sua biografia de Carmen, diz que a recusa foi por modéstia: o samba-exaltação seria mais uma exaltação a ela do que ao Brasil. Carmen não gravaria uma canção em seu próprio louvor. Há controvérsia. Carmen teria desdenhado da canção. Em todo caso, a canção foi gravada, em seguida (1941), pelo grupo vocal Anjos do Inferno (que fez sucesso). Se você entrar no Youtube você pode comparar ambas as versões, a dos Novos Baianos e a dos Anjos do Inferno. Aliás, aproveite e compare a discografia dos Anjos do Inferno com a de João Gilberto; dessa fonte ele bebeu, e muito.


Por que Brasil Pandeiro difere de Aquarela do Brasil e Onde o céu azul é mais azul? Cartas à redação. Aceitam-se sugestões.


Brasil, esquentai vossos pandeiros,

Iluminai os terreiros

Que nós queremos sambar


Assis Valente foi o autor de uma das mais tristes canções do Brasil, Boas Festas, onde ele diz “Faz tempo que pedi/Mas Papai Noel não vem/Com certeza já morreu/ou então felicidade/É brinquedo que não tem”. Na véspera do Natal, se você estiver sozinho e deprimido, não ouça. Nunca. É de chorar lágrimas de esguicho. Deve ser (estou chutando) uma das canções mais cantadas no Brasil, inclusive pelos Novos Baianos e João Gilberto.


Essa tristeza ou melancolia, que se encontram em todas as suas canções, mesmo as mais “alegres” (minha gente era triste amargurada, inventou a batucada para deixar de padecer) foi capturada pelos Novos Baianos em sua versão de Brasil Pandeiro. Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor surgem em todo o esplendor de seus vinte e poucos anos (quando o disco foi lançado). Pepeu Gomes deixou a sua marca, no arranjo e guitarra. Depois eles seguiriam carreiras solo e se tornariam estrelas com brilho próprio na música popular. Baby Consuelo, depois Baby do Brasil, não tinha vinte anos quando da produção do disco. Sua voz ressoa quase infantil (chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor) em um mundo de adultos sombrios.


E bota sombra nisso. 1972 foi o ano em que o Brasil comemorou o Sesquicentenário da Independência, efeméride inventada para trazer os restos de D. Pedro I ao Brasil. O regime militar estava triunfante. Caetano Veloso retornara no início do ano. Chico Buarque também voltara, mas usava pseudônimo (Julinho da Adelaide) para driblar a censura. Onde estavam os exuberantes festivais da canção dos anos 60? O recalcitrante e ainda liberal Estadão não tinha sido fechado, mas andava publicando receitas de bolo e poemas de Camões nas páginas de notícias e editoriais.


Mas os rapazes e moças persistiam em cantar, dançar e se divertir.

Meu amigo Mauro Barbosa, que é músico, diz que Brasil Pandeiro é atemporal e é também uma convocação. Quem não conhece Mauro Barbosa vá correndo ao Youtube, onde ele tem um canal e comece ouvindo de sua autoria Ai Ai Ai, que é uma canção de amor que se transformou em um hino à Curitiba. Nesta bela canção (e quem o conhece sabe que ela o expressa da primeira à última linha) ele diz “o nosso medo não vai para o jornal/ a gente é um/ e cada um não tem outro igual”. Como uma canção de amor se transforma em hino à Curitiba e, hoje, melhor que ninguém retrata estes nossos dias de clausura? Cartas ao Mauro Barbosa, que é atemporal. Cartas para Assis Valente, Moraes Moreira e João Gilberto.


Eles nos explicarão como se desce a ladeira em tempos sombrios.


Moraes Moreira não morreu no dia 13 de abril de 2020. Fake News. Eu o ouço sempre, para mim está vivíssimo. E, ao contrário da canção, está sempre subindo a ladeira. No Bloco do Prazer. A revista Rolling Stone elegeu Acabou Chorare o melhor disco da música popular já gravado no Brasil. Quem quiser saber tudo sobre Carmen Miranda e João Gilberto, leia os livros de Ruy Castro (Carmen Miranda e Chega de Saudade). Assis Valente você pode assistir e ouvir no Youtube. Há uma bela foto em que ele aparece ao lado de Carmen, os olhos sorridentes. Ele a amava, aquele mulato inzoneiro. Nós os amamos todos.

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