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Foto do escritorHatsuo Fukuda

DISTINTOS CAVALHEIROS

O Presidente come doces no Palácio Iguaçu.

Por Deyvid Setti e Eloy Olindo Setti - Obra do próprio, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=6339804



Foi um dia chuvoso, aquele. O aviãozinho pousou, ainda a tempo de permitir a descida do ilustre passageiro pela escadinha precária, e ser recebido por seu compadre, o governador Bento. Uma multidão de políticos e funcionários civis e militares aguardava o visitante, o Presidente Café Filho. Uma revista da tropa, cumprimentos, e antes da saída do campo de aviação, pomposamente denominado Aeroporto Afonso Pena, os guarda-chuvas se abriram, uma mostra da instabilidade climática ao visitante potiguar. Naquela Curitiba, como sempre, mesmo no final de dezembro o clima seria instável, com chuvas no decorrer do período.


Uma longa jornada de inaugurações e discursos aguardava o visitante no dia seguinte, 19 de dezembro. Biblioteca Pública, um belo prédio a ser inaugurado. Uma sessão solene na Universidade. Imersão no populacho, ansioso para tocar no Presidente da República. Almoço no Clube Curitibano, para ser visto pela elite que o considerava um dos seus. Inauguração da joia da coroa de realizações de Bento, o Palácio Iguaçu. Fechando o dia, jantar de gala no novo palácio.


Seria uma festa em que o udenismo, após a morte de Getúlio, quatro meses antes, exibiria um de seus delfins, Bento Munhoz da Rocha Netto, com sólidos vínculos com a tradição política da província, ele sendo o perfeito representante de uma oligarquia que estava cedendo o seu lugar na história. Um distinto cavalheiro. Café Filho o queria candidato a vice-presidente, na futura chapa udenista.

Em agosto, Getúlio, encurralado pela campanha liderada por Carlos Lacerda, em um movimento surpreendente, que deixou atônitos esquerda e direita, dera um tiro no peito, com isso derrotando os movimentos que estavam a um passo de depô-lo e esmagar as forças políticas que o apoiavam. Neste ambiente, a passagem por Curitiba seria um refresco para o novo Presidente. Estaria junto a um amigo fiel, cercado por um conjunto de forças políticas, econômicas e culturais que o apoiavam, fazendo o que político mais gosta: inaugurar obras alheias e descerrar placas com seu nome.

À noite, após percorrer a futura nova avenida monumental – a Cândido de Abreu ainda de chão batido – os carros começaram a chegar ao Palácio, despejando mulheres e homens da elite curitibana, homens de casaca e black tie e mulheres com vestidos longos e chics. Três mil convites haviam sido expedidos. Muita gente de fora não veio, mas mesmo assim seria uma festa de arromba.


A maioria provavelmente teve o seu primeiro contato com o palácio naquela hora, e deve ter se embasbacado com a beleza e imponência dos salões. A cidadezinha de 187 mil habitantes que era Curitiba, pontilhada por pequenas casinhas de madeira, cada uma com uma chaminé, tinha por hábito se aconchegar junto ao fogão a lenha, comendo pinhão, para se aquecer nas frias manhãs de inverno. Pobres ou ricos, todos sabiam que pequenos ambientes são mais aconchegantes. Os palácios públicos só por cortesia eram chamados de palácios; e as casas dos poucos ricos, com exceções, não eram muito melhores do que as dos pobres. Uma visita ao casarão que abrigou Bento e Flora, na Praça Osório (esquina com a Travessa Jesuíno Marcondes), onde hoje há um restaurante, mostra a modéstia em que viviam os senhores da terra. Grandes prédios públicos eram o edifício da universidade na Praça Santos Andrade e o Colégio Estadual, ambos recém-inaugurados.


Bento introduziu um novo padrão arquitetônico na província. A monumentalidade arquitetônica modernista prenunciava um novo tempo. Salões amplíssimos, com vastos espaços vazios, conformados por enormes painéis de vidro, ferro e concreto, davam uma nova dimensão ao poder público, e descortinavam o enlouquecido sonho de um novo Paraná, desenvolvido, moderno, rico. E belo


Alguns anos depois, outro ensandecido, Juscelino, seguiria os passos de Bento, e levaria seu sonho de modernidade ao Planalto Central, ao som de bossa nova e sorrisos largos, no ritmo moleque de jogadores de futebol (a Copa do Mundo é nossa) prenunciando um novo mundo em que o Brasil conquistaria o seu lugar de um jeito diferente, em que todos teriam um fusquinha e haveria estradas para usá-los.

A festa seria da elite, mas seria também paranaense. Um grupo de belas jovens, vestidas em trajes tradicionais (ucranianos? russos? poloneses?) percorreu o salão, com cestos, distribuindo alguma guloseima de sobremesa. Café Filho, ao lado de Bento, serviu-se, sorridente. Mulheres lindas e bem-vestidas acompanhadas de seus maridos e senhores, todos sorridentes, comeram o camarão com catupiri. De entrada, como se fazia antigamente, alguns petiscos espetados em abóboras, que lotaram um caminhão. A taba estava em festa, e não viu ou não quis ver os vidros não colocados em boa parte do palácio inacabado, e os improvisos de última hora que, hoje, reconheceríamos como sinais infalíveis de má administração. Sinais.


Mas a Deusa Fortuna, como a fada má, fez lembrar, para os que quisessem ler os sinais, das vicissitudes da vida e da política. Sem aviso, a luz se apagou, no meio da festa – enquanto Bento discursava -, mas logo voltou, também sem aviso. Um operário, inadvertidamente, havia desligado um disjuntor. Foi apenas um aviso da deusa, sinalizando o seu descontentamento com a execução precária da obra e a falta de planejamento, que havia sido superada pelo voluntarismo do pessoal técnico.


A festa se encerrou, coroando o sucesso do empreendimento de Bento e da visita de Café Filho.

Em seguida, Bento foi para o Rio de Janeiro, numa articulação de Café Filho para ser candidato a vice-presidente na futura chapa udenista. Foi nomeado ministro da Agricultura. Em poucos meses, a articulação deu com os burros n’água, a tentativa de golpe contra Juscelino – que venceu as eleições presidenciais – foi frustrada pelo Marechal Lott, e Café Filho entrou para a história como participante de um golpe fracassado. Só em 64 eles teriam sucesso. Bento retornou para a província. A oposição venceu a eleição para governador, e ele nunca mais obteve um mandato majoritário. Os dados haviam sido lançados, e a Deusa Fortuna não lhe seria mais favorável.

O baile no Palácio Iguaçu fora um sonho. Não foi uma inauguração, foi uma despedida.



“Os arquitetos adoram Bento. Pudera, o Centro Cívico foi um sonho de arquiteto. Sua execução, por si, com todos os seus percalços, foi uma magistral demonstração do que a província seria capaz. Foi, em sua época, o mais belo palácio do Brasil, eclipsado depois por Brasília. David Azambuja, autor do projeto do Palácio Iguaçu, também assinou o complexo da Reitoria. A mim impressiona, hoje, a liberal encomenda de pinturas e obras de arte feitas para embelezar o palácio. Theodoro de Bona foi encarregado de pintar a Emancipação do Paraná, que fica no salão nobre. No hall de entrada, cobrindo toda a parede lateral, um enorme painel (deslumbrante, não deixe de vê-lo) de Humberto Cozzo mostra os ciclos econômicos do Paraná. Bento, com todos os seus defeitos (e o eleitorado os viu, e o puniu), era um visionário e sonhador. Houve, com certeza, governadores melhores do que ele, inclusive com o seu amor à arte e à cultura. Mas Bento será o mais lembrado.”

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