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Foto do escritorHatsuo Fukuda

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL

A educação é uma arma poderosa. Uns aprendem a tomar chá, outros a matar.

Luc Besson, há alguns anos atrás, nos entregou La Femme Nikita, um bom filme em que Anne Parillaud interpreta o papel de uma jovem adicta que, presa em um assalto, é condenada à morte e salva por uma agência secreta de assassinos governamentais. Após uma morte fake, Nikita é posta sob a opção de morrer ou ser treinada pela agência para ser uma assassina profissional. Além de Parillaud, o filme conta com Jeanne Moreau como uma de suas treinadoras (papel perfeito para Moreau, que deve ter assassinado muitos com seu charme), Jean Reno como um cleaner profissional (outra seleção impecável de Besson). O filme deu origem a mais de uma série que passou nas tevês a cabo, bem como inúmeros remakes, inclusive um, que está na Prime Vídeo, do próprio Besson: Anna, em que a assassina agora é uma jovem russa, cuja cobertura é uma agência de modelos. Este é um prato cheio para os fetichistas adeptos de Victoria’s Secret.


Um destes remakes de Nikita foi feito na Coréia, A Vilã, direção de Jung Byung-Gil, com a atriz Kim Ok-vin no papel que foi de Parillaud, onde novamente o cinema coreano mostra porque é um dos mais importantes do mundo (o que Hollywood, tardiamente, está reconhecendo, com a multipremiação de Parasita). A trama se complica um pouco (alguns não gostaram, eu achei tipicamente coreano), mas está recheado da sanguinolenta ação que se tornou uma marca dos seus filmes de ação, desde o retumbante sucesso de Old Boy. Jung Byung Gil, além de refazer Luc Besson, também presta homenagem a Tarantino – atenção, spoiler -, com cenas quase idênticas a Kill Bill, com direito a uma noiva assassinada no dia de seu casamento.


Todos estes sanguinolentos filmes e séries, onde Hollywood se presta ao papel de Maria-vai-com-as-outras, em verdade tem sua origem na sempre adorada My Fair Lady (no Brasil, Minha Querida Dama) onde Audrey Hepburn faz o papel da pobre florista ignorante, que por artes de um mestre (Rex Harrison), se transforma em uma princesa. O filme, um dos grandes musicais da história (de 1964), foi dirigido por George Cukor, e foi incluído entre os top ten do American Film Institut na categoria musical. Meu crítico preferido, Roger Ebert, apontou a conexão em sua crítica à Nikita, em 1991. “Uma versão da lenda de Pigmalião para nossos violentos tempos – a história de uma jovem que se transforma, de uma assassina das ruas em assassina governamental”, se me perdoam a livre versão de seu comentário. Ebert não liga Nikita a My Fair Lady; liga-a à lenda grega de Pigmalião.


Nada mais ilustrativo dos nossos tempos que uma história que se propunha a ilustrar a ideia progressista de que a educação seria uma das chaves para resolver as desigualdades sociais (ideal dos fabianos, sociedade a qual pertencia George Bernard Shaw, autor da peça original), tenha se transformado, de um alegre musical da Disney em uma sangrenta história de vingança de uma mulher traída. A educação para a vida em sociedade e o reconhecimento das sutilezas da vida sentimental transforma-se em educação para as artes de matar. Irônico também pensar que o logo da Sociedade Fabiana é uma tartaruga, simbolizando a ideia de uma lenta mas segura transformação social. Um belo exemplo para uma assassina profissional.


Eliza Doolittle, em My Fair Lady, revoltava-se com a sua condição pós-educacional. O que seria de sua vida? Não era mais uma ignorante florista de rua, mas também não era uma senhora da sociedade. Mas Shaw (na bela versão de George Cukor), deixa em aberto a vida que Eliza, agora uma educada lady, poderia vir a levar. Já “A Vilã”, até pelo título, nos entrega a solução: em tempos sombrios como os que vivemos, a educação é uma arma poderosa, feita para matar.


Nikita, de Luc Besson, ganhou três estrelas e meia de Roger Ebert. O site Just Watch não entregou nenhum local para assistir. Persista, vale a pena. A Vilã, de Jung Byung-Gil, é uma mostra da vitalidade do cinema coreano contemporâneo, hoje, com certeza, onde se faz o cinema mais criativo do mundo. O sol nasce no Oriente. Na Prime Video. My Fair Lady é uma das grandes obras de um cineasta cheio de grandes obras, que é George Cukor. Foi indicado para 12 Oscars, e ganhou oito, inclusive melhor filme, direção e melhor ator. A vida é injusta, e Hepburn ficou a ver navios.

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