FOLHAS DE OUTONO
- Hatsuo Fukuda
- 20 de abr.
- 4 min de leitura
A comédia romântica possível em um mundo desencantado. Mas é bom.

Imagem de AdoroCinema.
Ansa é uma bela finlandesa que trabalha em um supermercado. Hollapa é um operador de máquinas alcoólatra. Já não são mais jovens. Eles vivem em um mundo sombrio, povoado por casas, alojamentos e locais de trabalho semelhantes aos que operários do século XIX viviam, à margem da próspera sociedade finlandesa atual. Uma tomada no filme mostra o bairro onde moram e trabalham, e ao longe se vê autopistas e arranha-céus, onde devem morar os felizes finlandeses que vivem no século XXI. Dizem que a Finlândia é o país mais feliz do mundo.
Ao chegar em sua lúgubre casa (um quartinho), cercada por casas lúgubres em uma rua ainda mais lúgubre, Ansa liga o rádio e ouve notícias da guerra na Ucrânia. É um dos sinais que o cineasta, Aki Kaurismäki, diretor e roteirista, envia aos espectadores: estamos em pleno século XXI. Hollapa, quando está descansando no alojamento da empresa, faz o mesmo. Liga o rádio (veio do mesmo museu em que tiraram o de Ansa) e ouve notícias sobre... a guerra na Ucrânia. Nada de música. Nada de dancinhas no Tiktok. Nada de OnlyFans. Nada de diversão. Esta é a Finlândia idealizada pelo cineasta.
Os personagens quase não falam e quase não se movem. Vivem em um mundo silencioso, onde só existe o trabalho e nele quase não há interação humana. Ansa é intimada pelo gerente do supermercado a mostrar a bolsa, e nela se descobre um alimento qualquer, com prazo de validade vencido, e que deveria ser jogado fora. Ansa é demitida pela infração.
Hollapa se fere ao operar a máquina, e descobre-se que ele estava alcoolizado. Também é demitido.
Dois perdidos na noite suja da Finlândia do século XIX idealizada por Kaurismäki. A eles só resta uma esperança. Descobrir um ao outro e serem felizes para sempre, como toda boa comédia romântica.
Uma característica básica da comédia romântica é a leveza de espírito. Nada de pesar a mão nas desgraças da vida. O espectador já tem problemas suficientes, e se vai pagar o ingresso ele quer ter certeza que será recompensado com uma história tola, implausível e com final feliz. O seguro garantia para o espectador, nestes casos, seriam atores reconhecidamente belos, fofos, personagens de um conto de fadas do filme de sábado à noite. Para isso, Doris Day e Rock Hudson, a dupla mais implausível de todas. Rock Hudson, como se sabe, era gay. Interpretava o macho americano típico da comédia romântica. Doris Day, uma grande cantora e com uma vasta trajetória no show business antes de ser atriz, era a loira burra e virgem à procura de um belo macho (piada da época: “Eu conheci Doris Day no tempo em que ela não era virgem”). Os protótipos seriam assumidos depois por Meg Ryan e Tom Hanks e hoje estão aguardando sucessores.
Esta lição (da leveza) Kaurismäki aprendeu. E como mestre do ofício, ele transforma aquilo que seria uma patética e sonolenta denúncia da reificação da vida da classe operária em um filme leve e engraçado.
Destaque especial para Alma Pöysti, que interpreta Ansa. Ela não é um zumbi ou uma vítima passiva do malvado capitalismo finlandês. Tudo que você possa imaginar de um personagem em busca de um sopro de vida está em seus olhos e seu gestual, e sua sutileza esmaga o espectador como uma manada de elefantes. Eu me senti esmagado por sua leveza.
A história de amor de Ansa e Hollapa é comentada pelas referências cinematográficas. A vida coisificada é retratada pelo filme de zumbi (The Dead Don't Die, de Jim Jarmusch). A busca infrutífera de Hollapa está no cartaz de Pierrot le Fou, de Jean Luc Godard. Rocco e suoi fratelli, de Lucchino Visconti, assistem o diálogo entre Hollapa e seu único amigo bebendo cerveja no bar.
Como toda boa comédia romântica, a trilha sonora rouba o espetáculo. Alguns comentaram que o filme é quase um musical. Vai do rock a Schubert, passando por Gardel. As canções pontuam o filme. Ou destacam a verdadeira natureza das coisas: Mambo Siciliano é tocado em uma jukebox enquanto fregueses velhos e desencantados engolem sua cerveja. Mas este sopro de energia latina não os atinge, pois há muito deixaram de pertencer ao mundo dos vivos.
Na cena final, Kaurimäk presta as últimas homenagens: Charlie Chaplin é citado nominalmente, e Ansa e Hollapa caminham em direção ao horizonte, acompanhados pelo cachorrinho, à procura daquilo que todos procuram, vagabundos ou não. Como trilha sonora, mostrando que o cineasta é sério – é necessário dar um toque brechtiniano à história – o espectador precisa se sentir um pouco desconfortado – happy end é uma babaquice hollywoodiana - a canção que embala a cena final é Les Feuilles Mortes, de Jaques Prevert, na versão finlandesa, Kuolleet Lehdet (Folhas mortas), que dá título ao filme. É o outono da vida deles. Um final feliz, satisfatório. Digno de uma comédia romântica-quase musical dos desencantados tempos modernos.
Folhas de Outono está nos streamings da vida. Ganhou o Prêmio do Júri em Cannes, 2023. E, o que espantou a todos, o título de melhor filme do ano da revista Time, além de outros. Vale a pena comprar. É uma pechincha, se você comparar com o preço dos ingressos no cinema. O diretor e roteirista, Aki Kaurismäki, tem uma vasta produção, que você encontra no MUBI. Les Feuilles Mortes, de Joseph Kosma e Jaques Prevert, que dá título ao filme, foi gravada milhares de vezes. Todos a gravaram. Coloque um pouco de beleza em sua vida e passe algumas horas ouvindo algumas. Sua versão em inglês, Autunm Leaves, foi escrita por Johnny Mercer. O que explica em parte o seu sucesso junto ao público americano. Não era um poeta qualquer. Era Johnny Mercer.
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