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Foto do escritorHatsuo Fukuda

FOLHETIM


Alexandre Dumas e Charles Dickens são os herdeiros de Sherazade, das Mil e Uma Noites. E o streaming atual é o herdeiro deles.


Imagem de Hatsuo Fukuda.


O mais consumido produto televisivo e cinematográfico do mundo, o folhetim – na forma de telenovelas, minisséries, filmes – e o mais amado pelos consumidores -, tem sua origem moderna na invenção da imprensa popular. Charles Dickens e Alexandre Dumas, os reinventores modernos do gênero, ganharam o seu pão magnetizando leitores no mundo todo graças aos seus rocambolescos episódios semanalmente publicados nos jornais. Aliás, uma das explicações da prolixidade de Dumas é que ele ganhava por página. Quanto mais palavras, mais dinheiro.


Mas o folhetim, cujo padrão clássico é o das Mil e Uma Noites, é anterior ao surgimento da escrita. Sua origem se perde na noite dos tempos – confunde-se com a origem da humanidade. Quando os primeiros seres humanos, dotados da fala, se reuniram ao redor das fogueiras, e contaram aos demais membros da tribo os acontecimentos do dia, ou algum episódio de suas vidas, iniciou-se a tradição folhetinesca. “Era uma vez” são as palavras que dão a senha para o início da magia. Toda criança sabe disso, e quando adulto, esta criança irá procurar este encantamento no cinema, no circo, na televisão, no streaming. Ou na literatura.


Todos conhecem a história de Scherazade, das Mil e Uma Noites. O sultão, magoado pela traição da rainha – que promovia bacanais com dezenas de odaliscas e escravos núbios na ausência do rei – decidiu que nenhuma mulher mereceria a sua confiança, e assim, todas as suas esposas passariam pela espada depois da primeira noite de núpcias. Scherazade voluntariou-se para casar com o sultão e acabar com a matança das virgens do reino. Após as atividades de praxe, ela começou a contar uma história ao sultão, história que foi interrompida no momento crucial com a chegada da manhã. O sultão suspendeu por uma noite a execução da rainha. E assim se passaram as noites, até que o sultão se reconciliou com a condição humana e perdoou as mulheres (e a si mesmo, acrescento eu). A sina de Scherazade é a sina de todos os escritores, e mais ainda daqueles que se dedicam ao cinema e televisão. Agradem o público ou serão decapitados. A palavra final é de sua excelência, o sultão. No caso, o espectador.


Não vou discutir com os pernósticos que tratam literatura e cinema como religião (a religião da arte) e desprezam o gosto popular. Eles sempre esquecem que os ícones desta religião da arte se nutriram, antes, da tradição do contador de histórias. Joyce, por exemplo, que escreveu seu catatau com base na tradição folhetinesca que fundou a cultura ocidental (Ulysses).


Alexandre Dumas (père) não tinha estes pruridos. Idem Dickens. Eles, despudoradamente, mexiam com as emoções dos leitores. Interrompiam acontecimentos-chave com o objetivo único e exclusivo de reter o espectador para a próxima rodada. Sua grande arte se dirigia ao leitor comum, e não entregava nada além de entretenimento nos serões familiares. Os sentimentos, desejos e emoções eram aqueles reconhecíveis por todos. Nada de contrabandear (contra as regras da arte) mensagens artificiais à história narrada. Scherazade não ensinará o sultão a governar o reino ou como tratar suas mulheres. As narrativas, por abarcarem o infinito labirinto da vida humana, se encarregarão desta tarefa. O sultão aprenderá, em seu tempo, que o sofrimento que uma mulher trouxe, outra mulher se encarregará de aliviar.


Alexandre Dumas, père, é o escritor francês mais lido no mundo. Foi execrado pelos intelectuais da época, que não o consideravam suficientemente culto (além de ser negro). Em 2002 a França reparou a injustiça e levou seus restos mortais para o Panteão, onde repousa ao lado de Victor Hugo, Rousseau, Zola, Malraux e Voltaire. Meu exemplar de Os Três Mosqueteiros (tradução de Fernando Py)) é uma bela edição com 626 páginas. Na Amazon você encontra obras de Alexandre Dumas, père, em inglês ou francês, por alguns centavos de dólar. As obras completas de Dickens por US$ 0,99. Em edição Kindle. A maior pechincha do século.

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