Quanta sabedoria há nos aforismos…
Só não lavei as mãos e é por isso que eu me sinto cada vez mais limpo. Ivan Lins - Daquilo que eu sei.
Quem imortalizou o gesto foi Pilatos. Ao simplesmente lavar as mãos, entregava Jesus Cristo aos soldados, ao suplício e à cruz. Com sua autoridade de Governador da Judeia, Pôncio Pilatos poderia tê-lo salvo, mas preferiu não contrariar a turba enfurecida. E declarou: sou inocente do sangue deste justo!
Mas certamente não é. Lavar as mãos é omitir-se diante de uma injustiça, de algo flagrantemente errado. Fugir à responsabilidade que lhe cabe. A omissão condenável é de quem pode e deve evitar o mau resultado, sobretudo se é formalmente responsável por evitá-lo. Pilatos sabia que estava condenando um inocente à cruz, então sua omissão não é escusável e o sangue do justo repousa sobre ele.
Neste ponto reside a genialidade dos versos de Ivan Lins, este grande compositor brasileiro algo esquecido e, talvez, pouco valorizado. É forte a contradição presente no verso: não lavei… … cada vez mais limpo. A contradição aparente entrega força e graça ao pensamento. Não me omiti. Fiz o que devia. Lavar as mãos em ocasiões assim é sujar-se, macular-se. Lançar vergonha sobre si mesmo.
Todos os dias contemplamos injustiças. Algumas podemos impedir, muitas não. Aquelas que não podemos impedir, não nos cobram o preço da omissão. Aquelas que podemos impedir, sim. A omissão de socorro é um exemplo clássico. Se você pode socorrer, deve fazê-lo na medida de seu conhecimento e capacidade.
Hoje, nossa frágil democracia está sob ameaça. Claramente está sob ameaça, acossada pela direita mais radical possível. Enquanto cidadão comum, talvez pouco possa fazer. Neste pouco, contudo, não devo lavar as mãos, não devo me omitir. Se o que posso fazer é buscar conscientizar quem não percebe o problema, seja. Se está ao meu alcance apenas lançar luz para poucos, amigos, parentes, seja. Não lavarei as mãos e assim me sentirei cada vez mais limpo, cada vez mais limpo, cada vez mais limpo!
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