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MANUAL DO CRONISTA


Um século atrás, um poeta ensinava a arte da crônica.


Imagem promocional de Amazon.


Em uma dessas tardes quaisquer, daquelas em que podemos preguiçosamente garimpar num sebo, estava tranquilamente procurando um livro de poesias de um dos meus poetas favoritos, Guilherme de Almeida. Subitamente dei de cara com a obra: "Pela Cidade". Qual não foi minha surpresa ao perceber que não se tratava de poesia, mas de crônica. Guilherme de Almeida, o "príncipe dos poetas brasileiros", até certo ponto mal conhecido dos brasileiros, escreveu crônicas?


Escreveu. Por muitos meses, entre 1927 e 1928, Guilherme de Almeida manteve uma crônica diária no jornal do Partido Democrático, que na época opunha-se ao PRP - Partido Republicano Paulista. Nas folhas do Diário Nacional o poeta escreveu sobre tudo, do transporte público à arquitetura, de tipos curiosos à praças da cidade. Sobretudo escreveu sobre São Paulo.


O garoto de São Paulo é um tipo à parte, sui generis no Brasil. Tem uma almazinha boêmia, satírica às vezes, com um pouco da calma ironia do nosso caboclo e muito da deliciosa, quase artística, indolência dos lazzaroni napolitanos, cantando ao belo sol...


Fala assim de engraxates e jornaleiros, como de tipos vetustos de paletó e charutos, grandes matronas e outros seres da fauna paulistana, com a naturalidade de quem troca uma ideia na Praça da Sé. Para um historiador, certamente, a obra é fonte de consulta importante, revelando como viviam nossos avós e bisavós, naquela que crescia para ser a pauliceia desvairada de Andrade. Quando surgiu e que impressões causou, por exemplo, o primeiro arranha-céu com mais de 20 andares? Como funcionavam os bondes, com seus motorneiros e cobradores, vermelhos e esbaforidos? Como era o Vale do Anhangabaú no começo do Século XX?


Mas a primavera existe. Existe para a gente que sabe olhar com inteligência os jardins dos bairros bons, atapetados de cousinhas lindas e coloridas, e os rebentos verdes e tenros dos plátanos citadinos... Existe para as sensibilidades esquisitas que sabem abstrair as chatas brutalidades da vida da cidade, para só sentir a finura de seda que há, de tarde, nestes céus altos e lânguidos... Existe para os que ainda não acreditam só em folhinhas, relógios e barômetros, mas, principalmente, em si mesmos, na sua capacidade emotiva, no seu poder de imaginar, de fantasiar, de sonhar...


Para aqueles que se propõem à solitária missão de manter em jornal, revista ou meio eletrônico, uma crônica diária, ciente do imenso desafio que se faz à criatividade, à capacidade de observação do mundinho quotidiano, renitentemente igual, mas diverso para quem vê sutilezas, convém a leitura desta obra. É verdadeiramente um manual do cronista, com lições de ironia, argúcia e bom português. Vejam como abre uma crônica dedicada a um domingo comum e qualquer:


"... E no sétimo dia descansou...

Então, a invejosa e invariável humanidade, que já uma vez engolira uma maçã proibida, porque queria ser sicut Deus, e outra vez tentara edificar uma torre altíssima, para tomar de assalto o céu e usurpar o trono do Senhor, essa constante humanidade, sempre lógica e coerente consigo mesma, entendeu de descansar também, de sete em sete dias, para ficar ainda mais parecida com Deus...


Sim, Guilherme de Almeida, além de grande poeta, também foi cronista. E dos bons.



Pela Cidade - Livrarias Martins Fontes Editora Ltda, 2004 - 551 páginas. Você encontra na Amazon e nos sebos. Indicado para quem pretende escrever crônicas, para historiadores que busquem fontes diretas sobre a São Paulo das primeiras décadas do Século XX e para quem ama nossa língua quando escrita com perfeição.

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