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Foto do escritorHatsuo Fukuda

NARCEJAS

Relatos de um inglês que por aqui passou no Século XIX.

Imagem de beecook68 por Pixabay

Um dos meus amigos pândegos, lendo a crônica sobre João Ghelfi, interessou-se particularmente pelas aventuras de Jesse Valadão nas noites curitibanas, que se tornaram lenda, na famosa boate Marrocos – chamamos de boate em homenagem às almas puras que nos lêem – no local onde antes teria sentado praça o pintor Ghelfi e antes dele, o pintor Andersen. Nada sei da vida do famoso macho brasileiro; passo. Mas antes lembraria aos leitores a frase imortal dita no filme “O homem que matou o facínora”, de John Ford, uma das paixões cinematográficas do escriba:


Entre a verdade e a lenda, publique-se a lenda.


Pois é, pouco importa o que realmente aconteceu. A história é boa, e “orna” com o personagem. Que role escada abaixo.


Enterradas no apressado quotidiano da nossa vida urbana tão sem raízes, jazem esta e outras memórias de uma cidade que um dia foi a nossa; distante, mítica, quase anterior à história, não fossem os registros nos darem conta de que foi, um dia, real. Esta Curitiba na qual pisamos, distraídos, já foi uma pequena cidade alemã, ou uma pequena vila italiana, dependendo do viajante que nela aportou. Os restos deste sonho estão aqui e ali, como nas calçadas de Lange de Morretes - uma dessas felicidades a que estávamos acostumados -, nos retratos, paisagens e esculturas que nos legaram– felicidades que, como nas lendas que se perdem no tempo, aqui também se perderam.


Um desses viajantes, Thomas Bigg-Wither, por aqui aportou em 1872. Conta ele, em seu livro, que a cidade poderia ter uns 9.500 habitantes, dos quais 1.500 eram imigrantes, especialmente alemães e franceses. Os alemães estavam bem instalados na cidade. Os dois únicos hotéis eram de propriedade de alemães. A equipe de Bigg-Wither ficou hospedada no hotel de Herr Luis Leitner; o pequeno comércio, em sua maioria, era de alemães. Também germânico era o transporte por carroças ao litoral. Conta o engenheiro que, percorrendo os subúrbios, ao passar por uma casa, um brasileiro diria: “É de um alemão!”, propriedades sempre identificadas pela horta, comum a todas as casas alemãs. Segundo conta, ao passar por um homem trabalhando com uma pá ou picareta, podia-se falar diretamente a ele, em alemão, sem olhar o rosto.


Todo trabalho que na Inglaterra chamamos de “cavoqueiro” é feito exclusivamente por estrangeiros nesta província, sendo que nove décimos são alemães.


E acrescenta:


Os brasileiros desprezam esses homens que trabalham com a picareta e pá e chamam-nos desdenhosamente de “trabalhadores do Brasil”.


Na memória de Bigg-Wither, a cidade amanhecia, em agosto, coberta de geada. Abundavam os pássaros. Logo no primeiro dia de sua chegada, caçador contumaz, saiu com um companheiro atrás de pássaros. Seguiram pela Rua das Flores e após um pouco menos de cem metros depois do final da rua, dirigiram-se para uma planície ampla, distante dela uma milha (1,6 km). Em um brejo, as narcejas levantavam vôo em bandos de 20 ou trinta, e, depois de um tempo, deixavam o céu escuro, espantadas pelos caçadores.

Suponho que o brejo a que se refere seja o local onde hoje é o Passeio Público, que, 40 anos depois, foi retratado por Andersen como um local onde havia vários lagos. Diz Bigg-Wither que os lagos “pareciam ser as nascentes do Rio Iguaçu, perto de cujas cabeceiras Curitiba está situada”. Como sabemos, a região onde hoje é o Passeio Público é banhada pelo Rio Belém (que era cheia de lagos), que desaguará, mais adiante, no Rio Iguaçu, razão do equívoco do explorador inglês.


A caçada foi rica, com Bigg-Wither voltando ao hotel com as sacolas cheias de patos e narcejas, que entregou a Herr Leitner, que as preparou para o jantar. Este consistiu em uma mesa farta, com sopa de arroz, frango com arroz, carne com arroz, narceja com arroz, pato com arroz, feijão com arroz, e arroz simples, tudo regado a cerveja, preta e branca, e vinho de Lisboa, tinto e branco.


Narcejas. Nunca as vi, em Curitiba, em gaiolas, e muito menos em liberdade. Eu me perguntava, lendo, se o tradutor do livro não teria se equivocado, ou talvez o próprio autor não tivesse fantasiado a ocorrência das aves. Elas realmente existiram, naquelas quantidades míticas a que se refere o autor? Quando deixaram elas a cidade de Curitiba, em que momento os pássaros que abundavam nos lagos e rios seguiram para outros locais mais amáveis?


Foram-se as narcejas, junto com as geadas de agosto.


O Homem que matou o facínora, de John Ford, é um dos grandes filmes da história. Com John Wayne, James Stewart e Vera Miles fazendo um triângulo amoroso, e Lee Marvin no papel de sempre, facinorosíssimo. Temístocles Linhares assina a tradução de Pioneering in South Brazil. Three Years of Forest and Prairie Life in the Province of Parana”, que recebeu o título de “Novo Caminho no Brasil Meridional: A Província do Paraná. Três anos em suas florestas e campos, 1872/1875.”. Pesquise no Google e você saberá o que é uma narceja. Elas existem. Talvez no Passeio Público você encontre uma, como nós, engaiolada.

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