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Foto do escritorManuel Rosa de Almeida

O BOM ADMINISTRADOR


Um diálogo ao estilo platônico

Imagem de139904porPixabay

Fábio telefonou para saber em que praça encontraria o velho. A Praça Osório foi a escolha de Hipólito para aquele fim de tarde. Encontrou-o sentado num banco, ao lado do chafariz.


FÁBIO – Estou feliz em encontrá-lo. Preciso de sua ajuda.


HIPÓLITO – Como vai, amigo? Algum problema?


FÁBIO - Um trabalho em equipe para apresentar na escola. As ideias até agora não parecem muito boas.


HIPÓLITO – Do que se trata?


FÁBIO – As Virtudes do Bom Administrador.


HIPÓLITO – Um tema e tanto. Até onde chegaram em suas discussões?


FÁBIO – Quase nada. Apenas enfatizar a honestidade como a virtude principal. Pode me ajudar?


HIPÓLITO – Podemos pensar juntos sobre o tema... o que acha?


FÁBIO – Ótimo. Por onde começamos?


HIPÓLITO – Bem, antes de tudo, é preciso entender o campo da pesquisa. Administrador é um termo amplo, que designa a capacidade de gerenciar, nos mais diversos níveis, empreendimentos públicos e privados. É a isso que se referem? As virtudes de qualquer administrador?


FÁBIO – Não, não. O foco é o administrador público.


HIPÓLITO – Bem, esta é uma especificação importante. Afinal, parece-me que faríamos uma abordagem bem diferente se tratássemos de administradores privados... Mas mesmo considerando o administrador público, vocês pensam em qualquer administrador?


FÁBIO – Como assim?


HIPÓLITO – Veja, entre os servidores públicos, nem todos podem ser considerados administradores, pois administração pressupõe poder de decisão e comando. Muitos servidores públicos são meros executores. Ainda assim, a expressão administrador público é muito ampla, pois abrange de um simples chefe de repartição até um ministro de estado.


FÁBIO – Penso que o objetivo de nossa pesquisa refere-se ao presidente, aos governadores e prefeitos.


HIPÓLITO – Muito bem. Chefes do Poder Executivo, portanto. Agora, se investigamos as virtudes do bom administrador público e estamos focados nos chefes do Poder Executivo, primeiro é importante perguntar: em que país?


FÁBIO – Por que isso é importante?


HIPÓLITO – Porque em cada país há um sistema e as virtudes necessárias a cada administrador variam de acordo com este sistema.


FÁBIO – Como assim?


HIPÓLITO – Pensemos apenas nas diferenças entre uma ditadura e a democracia. Pensa que as virtudes do administrador seriam as mesmas em ambos casos?


FÁBIO – E um ditador pode ser um bom administrador?


HIPÓLITO – Uma ditadura é um sistema terrível, que sacrifica valores importantes... Mas, em tese, sim. Na verdade, até com mais facilidade. Isso talvez possa ser tema em outra discussão. Afinal de que sistema estamos falando?

FÁBIO – Estamos falando do Brasil.


HIPÓLITO – Uma democracia, portanto. Imperfeita e imatura, mas uma democracia.


FÁBIO – Exato. As virtudes do bom administrador... dos chefes do Poder Executivo em uma democracia.


HIPÓLITO – Muito bem. E vocês elegeram a honestidade como valor principal para o bom administrador?


FÁBIO – O problema é que parece muito óbvio, não é mesmo?


HIPÓLITO – Parece... para uma reflexão superficial sobre o tema.


FÁBIO – Quê? Então não concorda?


HIPÓLITO – Vamos pensar juntos. A honestidade é virtude que admite gradações ou não?


FÁBIO – Não. Ou se é honesto ou desonesto.


HIPÓLITO – É como diziam as professoras antigamente... se roubar uma borracha hoje, será ladrão amanhã.


FÁBIO – Isso.


HIPÓLITO – O mesmo se dá com a bondade?

FÁBIO – Como assim?


HIPÓLITO – Ou se é bom ou mau?


FÁBIO – Penso que neste caso a resposta é mais difícil.


HIPÓLITO – Voltemos à honestidade. Se um homem se apodera do que não é seu, digamos uma carteira que encontrasse no banco desta praça. A carteira contém duzentos reais, mas traz também os documentos do verdadeiro dono, de modo que o homem poderia entregá-la ao real proprietário. Você o chamaria desonesto?


FÁBIO – Com certeza.


HIPÓLITO – E estaria correto. Desonesto seria, não há dúvida. Desonesto seria para sempre?


FÁBIO – É provável.


HIPÓLITO – Irremediavelmente desonesto para o resto dos seus dias?


FÁBIO – É bem possível.


HIPÓLITO – É provável... é possível... já não tem tanta certeza, não é mesmo?


FÁBIO – Certezas são muito absolutas...


HIPÓLITO – Falou muito bem! E perigosas! Mas agora continuemos. Não se cogita da possibilidade de arrependimento? Este mesmo homem, movido pelo remorso ou por bons conselhos, não poderia no dia seguinte contatar o real proprietário e devolver a carteira?


FÁBIO – Acho que sim.


HIPÓLITO – E neste caso você ainda o chamaria desonesto?


FÁBIO – Não mais.


HIPÓLITO – Então, se ontem era irremediavelmente desonesto e hoje já não é mais, podemos concordar que a honestidade não é virtude absoluta.


FÁBIO – Sou forçado a concordar.


HIPÓLITO – Continuemos a pensar. A consequência da desonestidade deve ser levada em conta?


FÁBIO – A que se refere?

HIPÓLITO – Ao prejuízo, ao dano.


FÁBIO – Deve ser levado em conta. Roubar um sorvete não é como roubar um banco.


HIPÓLITO – Entretanto, ambos são atos desonestos.


FÁBIO – São.


HIPÓLITO – E que dizer das vítimas. Devem ser levadas em conta?


FÁBIO – Explique melhor.


HIPÓLITO – Que ato você diria que é mais grave: roubar de um velhinho, quando sai do banco, todo valor mensal de sua aposentadoria ou desviar de um grande banco dez vezes aquele valor numa fraude contábil?


FÁBIO – O primeiro ato.


HIPÓLITO – Entretanto, ambos são atos desonestos.


FÁBIO – São.


HIPÓLITO – Então podemos concordar em alguns pontos. A honestidade não é virtude absoluta e seus atos são passíveis de gradação.


FÁBIO – Isso não é um raciocínio perigoso?


HIPÓLITO – Perigoso é parar de pensar. Até a Justiça e o Direito reconhecem esta verdade.


FÁBIO – Mesmo?


HIPÓLITO – Sim. Furtos famélicos – aqueles motivados pela fome - não são considerados crimes. E na sanção dos crimes leva-se em conta a consequência dos atos e a condição das vítimas.


FÁBIO – Isso é o que eu não diria no começo de nossa conversa.


HIPÓLITO – Agora apliquemos estas primeiras conclusões ao administrador público que temos em mente. Podemos concordar que a honestidade é uma virtude desejável ao administrador público, mas não a principal virtude?


FÁBIO – Penso que sim, mas algo em mim rejeita esta ideia.


HIPÓLITO – Porque você está tomado pelo senso comum.


FÁBIO – O que quer dizer?


HIPÓLITO – Em qualquer pesquisa de opinião, noventa por cento das pessoas dirão que a honestidade é a principal virtude do bom administrador.


FÁBIO – De fato...


HIPÓLITO – Suponha um administrador que fez um maravilhoso trabalho, em todos os sentidos, ao longo de quatro anos. Entretanto, em algum ponto desta trajetória, perdeu-se e desviou, digamos, R$ 500.000,00 para o próprio bolso. Mesmo lamentando o ato e mesmo com a certeza de que poderia ser um administrador ainda melhor, negaremos a ele o conceito de bom administrador?


FÁBIO – Penso que não.


HIPÓLITO – Então demonstrado está que a honestidade, embora desejável, não é a principal virtude do administrador público.


FÁBIO – Então, qual seria?


HIPÓLITO – Continuemos pensando. Falamos de uma democracia... pensa que é possível, numa democracia, governar sozinho?


FÁBIO – Claro que não.


HIPÓLITO – Do que o administrador depende?


FÁBIO – De bons ministros.


HIPÓLITO – Sim, conselheiros, que podem ser ministros ou secretários, conforme a esfera de governo de que estamos falando. Mas isto é necessário em qualquer governo. Estar assessorado de bons conselheiros é fundamental, seja numa democracia, seja numa ditadura. Afinal...


FÁBIO ( interrompendo ) - ... o administrador não pode entender de tudo.


HIPÓLITO – Muito bem. Jamais entenderá de toda vastidão dos temas com que terá de lidar. Embora haja alguns arrogantes que julguem entender de quase tudo... Mas voltemos especificamente à democracia. Além dos ministros, de que o administrador depende?


FÁBIO – Apoio popular?


HIPÓLITO – Bem, isso não atrapalha. Mas refiro-me às relações com outro poder, sem o qual o administrador simplesmente não governa.


FÁBIO – Deputados?


HIPÓLITO – Sim, deputados e senadores. Os vereadores, se nos referirmos ao prefeito. O Congresso, a Assembleia Legislativa, a Câmara Municipal. O Poder Legislativo, enfim. É possível governar numa democracia sem o Poder Legislativo?


FÁBIO – Penso que seria difícil...


HIPÓLITO – Não meu caro. Seria impossível. O Legislativo interfere no orçamento, na aprovação das propostas legislativas que vêm do Executivo. Além de poder criar um sem fim de empecilhos. Não, não. Sem o Legislativo a vida do administrador é um inferno. E o que é preciso para o relacionamento com o Legislativo?


FÁBIO – Apoio popular?


HIPÓLITO – Como disse, isso não atrapalha. Mas necessário é saber negociar, diplomacia, sedução.


FÁBIO – Tudo isso para lidar com deputados?


HIPÓLITO – E senadores. E vereadores. A capacidade de relacionar-se com o Legislativo é fundamental. Mas não veja as coisas de modo errado: negociar dentro do que a lei permite; seduzir pela autoridade, pelo respeito pessoal, pela capacidade de ouvir as pessoas. E diplomacia... sempre. Com diplomacia, autoridade, afabilidade e claro, o apoio popular, o administrador pode encontrar no Legislativo um aliado.


FÁBIO – E esta é a principal virtude do bom administrador?


HIPÓLITO ( surpreso ) – Qual?


FÁBIO – Esta capacidade de relacionar-se...


HIPÓLITO – Eu disse isso?


FÁBIO ( um pouco confuso ) – Bem... pareceu deixar subentendido...


HIPÓLITO – Não, meu caro. Estamos investigando quais as virtudes do bom administrador, para atingirmos a principal delas, se é que há uma mais importante que as outras. Já vimos a honestidade e a capacidade de relacionar-se como importantes. Mas seriam a virtude principal?


FÁBIO – Ao que parece, não.


HIPÓLITO – Honestidade, bom relacionamento e correto assessoramento. Não lhe parece que falta uma característica subjetiva, sem a qual tudo o mais se perde?


FÁBIO – Subjetiva?


HIPÓLITO – Sim, ínsita à pessoa. Uma virtude que deve estar presente do começo ao fim do mandato, sob pena de comprometê-lo. Uma virtude pessoal que faz do mandato quase um sacerdócio...


FÁBIO – Devoção?


HIPÓLITO – Bravo! Devoção a quê?


FÁBIO – A Deus?


HIPÓLITO – Nossa! Retiro o bravo! Péssimo... Como a devoção a Deus poderia ajudar o bom administrador?


FÁBIO ( encabulado ) – Não sei... falei sem pensar.


HIPÓLITO – Pois não faça isso... Somente se Deus fosse um dos conselheiros... o que nos remete ao absurdo. Mas então? Devoção a quê?


FÁBIO – Ao mandato?


HIPÓLITO – Não. Isto é um fim em si mesmo. Ditadores são devotados ao seu “mandato”. Pense: de que vale a honestidade, os bons conselheiros, a capacidade de relacionamento, se tudo isso não estiver voltado a...


FÁBIO – Ao povo!


HIPÓLITO – Ao interesse público. Uma diferença sutil, mas importante. Podemos tratar dela em outra discussão.


FÁBIO ( eufórico ) – Então é isso? Devoção ao interesse público?


HIPÓLITO – Devoção, entrega, busca, a palavra é de somenos. Pense na ideia. Gosto de devoção pelo seu caráter subjetivo que encerra um conteúdo missionário, quase sagrado. Mas sim: se o administrador não for, desde o primeiro ao último dia devotado ao interesse público, de nada servirão as demais virtudes.


FÁBIO – A devoção ao serviço público é a principal virtude do administrador público!


HIPÓLITO – Calma lá, meu amigo. Não disse isso.


FÁBIO – Não... mas deixou subentendido.


HIPÓLITO – Você e seus “subentendimentos”... a mim parece que você “subentende” demais...


FÁBIO – Mas Hipólito...


HIPÓLITO – Vamos pensar mais um pouco. Encontramos quatro virtudes que entendemos essenciais ao administrador público, a saber: honestidade, assessoria de bons conselheiros – e aqui a virtude é saber escolhê-los e ouvir seus conselhos - capacidade de relacionamento com o Poder Legislativo e devoção ao serviço público. Correto?


FÁBIO – Correto.


HIPÓLITO – Para considerarmos uma destas virtudes como principal, devemos perguntar se – ausente ela – o administrador público poderia fazer um bom trabalho. Fizemos isso com a devoção ao serviço público...


FÁBIO – E a resposta foi negativa.


HIPÓLITO – De fato. Mas para eleger a devoção como principal virtude – e veja que o termo principal exclui as demais – antes precisaríamos fazer a mesma pergunta para as demais virtudes.


FÁBIO – É razoável.


HIPÓLITO – Então responda: mesmo sendo devotado, honesto e com bom relacionamento junto ao Poder Legislativo, se o administrador público for mal assessorado, conseguirá fazer um bom governo?


FÁBIO – Acho que não.


HIPÓLITO – De fato não. Pois todas suas boas intenções sofreriam de mal direcionamento. Seu governo dependeria de sorte, um fator nada confiável. Agora imagine que o administrador público é bem assessorado, por competentes e leais profissionais. Além disto, ele é honesto e devotado. Mas não consegue estabelecer relacionamento sólido com o Poder Legislativo. Neste caso, teria sucesso?


FÁBIO – Como já vimos, não. Pois o Legislativo sabotaria seu governo.


HIPÓLITO – Exato. Sem o Legislativo não se governa. Finalmente, a última hipótese: nosso administrador é devotado, bem assessorado e com ótimo relacionamento junto ao Poder Legislativo. Mas é totalmente desonesto, corrupto. Faria um bom governo?


FÁBIO – Claro que não.


HIPÓLITO – Certamente não. Ainda que buscasse encobrir seus maus atos com algumas obras, a desonestidade é um monstro voraz, sempre faminto. Acabaria por consumir a maior parte dos recursos públicos, seja pelo desvio direto, seja pelo mau exemplo que fomentaria a multiplicação da corrupção.


FÁBIO – Mas algo aí não faz sentido. É possível ser devotado e desonesto ao mesmo tempo?


HIPÓLITO – De fato, não. Mas é possível ser honesto sem ser devotado. É por aí que desenvolvemos o raciocínio.


FÁBIO – Mas então, você formulou errado sua última hipótese.


HIPÓLITO ( refletindo ) – Menino... tem razão. Inverti os termos. O honesto sem devoção não faria um bom governo, mas agora pela falta de energia e dedicação que entregaria ao trabalho, contagiando toda sua equipe. Obrigado pela correção, Fábio.


FÁBIO – Então...


HIPÓLITO – Então... o que concluímos?


FÁBIO – Não há uma virtude principal.


HIPÓLITO – Muito bem. O bom administrador público deverá ter todas estas virtudes em alto grau e considerável equilíbrio.


FÁBIO ( levanta-se agitado ) – Eis a resposta! Devo ir... por estas ideias no papel.


HIPÓLITO – Por que esta preocupação?


FÁBIO – Não gravei nossa conversa, Hipólito. Posso perder tudo da memória...


HIPÓLITO – Pois não tema. Esta é a beleza do pensamento bem ordenado. Sempre se pode reconstituí-lo. Basta fazer novamente as mesmas perguntas.


FÁBIO ( estreita sua mão, sorrindo ) – Tem razão. Outro dia podemos discutir novos temas. Vou indo... te vejo por aí, Hipólito.


HIPÓLITO – Em alguma praça do centro de Curitiba...

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