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O CAMINHO DA FÉ


Um reciclador expressa a fé sem palavras, calando o caminhante noturno.


Imagem de Hatsuo Fukuda.



O belo final de tarde deu lugar a uma noite fresca e agradável. Paro no cruzamento, ao lado de um carrinho carregado de papéis. Pergunto quanto pesa e sou informado que devem ser uns duzentos quilos. Mas pode chegar a seiscentos. Seiscentos quilos? Mas como, se o carrinho estava cheio até a borda? Ele seguirá até a Vila das Torres, onde venderá o material por sessenta, setenta reais. O dia está quase ganho (eram quase sete horas), e depois, o merecido descanso. É um homem baixinho, com um tronco robusto, com mais de cinquenta anos. Olhos escuros brilhantes, com um olhar tranquilo. Estava em paz com a vida. O sinal fechou e cada um seguiu o seu caminho. Eu, em direção à padaria, onde compraria um pãozinho seco – sobra do dia anterior, eles vendem mais barato – ele, com a tranquila determinação dos que tem uma tarefa a cumprir, rumo à Vila das Torres.


É Marta, a fé com obras, penso.


Apesar da noite propícia à caminhada, a melancolia começou a cavocar a mente e pedir espaço. E mais, cada vez mais. Um pouco mais e tomaria conta da mente desocupada. Esquivo-me de uma figura suspeita, olho para as pernas de uma mulher orgulhosa de suas pernas – exibida – orgulhosa – e fujo à tentação da melancolia. Um carro quase me atropela. É um aviso. A excessiva introspecção o levará à ruína, alertam os deuses da Urbe. Qual deles? Aquele que abençoa os carros, as máquinas e todos os instrumentos que produzem ruído e fumaça. Volto ao modo caminhante urbano, atento, alerta.


Há algumas ilhas de tranquilidade na rua, com mesinhas de cafés e bares na calçada. Neste trecho não há moradores de rua, ou porque foram expulsos, ou porque preferem a região mais central, onde há mais movimento. Um casal com a filha toma sorvete. Um grupo conversa animado, após um dia de batente no escritório. Alguns garotos e garotas fumam na frente de um café; logo adiante, um bar lotado com um burburinho de recreio de escola – no fundo, a mesma coisa. Hora do recreio de adultos.


Na padaria, a moça solícita me reconhece e ignora a senha que lhe estendo. Há poucos fregueses naquela hora. O pão seco de cada dia me aguarda, silencioso. Ele matará a minha fome, e meu corpo envelhecido dirá obrigado, em várias línguas. Eu agradecerei, e tomarei minha água e um copo de vinho, ansioso para que eles suavizem minha mente ressecada, e me entregarei sem cuidados à melancolia de uma vida inútil.


Uma vida sem fé e sem obras.



O reciclador atarefado lembra a bela tradição cristã dos irmãos de Betânia, Marta, Maria e Lázaro, hospedeiros do Senhor. Marta, a irmã mais velha, ao recebê-lo em casa, era atarefada e prestativa; Maria tinha todas as atenções voltadas para Jesus, descuidando das atividades domésticas; Lázaro era o irmão ressuscitado. Na tradição cristã, Marta passou a simbolizar a fé que se expressa com obras. No dizer de um de seus maiores, Tiago: “Mostra-me a tua fé sem obras, e eu pelas minhas obras te mostrarei a fé”.




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