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Foto do escritorManuel Rosa de Almeida

O PÁSSARO AZUL

Republicando


Um conto de Manuel Rosa de Almeida sobre nossa jornada na terra.

Imagem de Annalise Batista por Pixabay

Agora a carruagem seguia num campo irregular, as rodas saltando em buracos, o aro sofrendo com pedras severas. A tocada era hesitante, lenta. Cada depressão doendo em molas e parafusos, suas peças de ferro implorando por um pouco de graxa. Em outros tempos, a velocidade seria maior, os amortecedores absorveriam calmamente os solavancos e o vento faria cócegas na madeira da caixa para quatro lugares. Mas a madeira já não brilhava como antigamente, quando o cocheiro conferia o penteado em sua porta luzidia.


Na lateral direita um risco de pedra mostra ainda a agressão sofrida. Foi um menino, não mais que treze anos, por revolta ou pirraça, nem lembra mais. Um longo, irregular e feio risco, revelando a cor da madeira sob a pintura. As correias são hoje pouco mais que couro retorcido. Os bancos, antes confortáveis e convidativos, apontam estrias ressequidas. O vidro dianteiro, onde os passageiros contemplavam a paisagem, estava embaçado pelo tempo.


Ao longe, os limites do campo delineiam um horizonte de profundo azul. Segue lenta e sacolejante, o vento aumentando na proximidade do mar. Afinal, para onde o cocheiro está me levando?


Ele estava cansado. O banco da carruagem lhe doía pernas em cada sacolejo. As rodas proferiam um chiado enfadonho, irritante. Olhou por sobre o ombro para contemplá-la longamente. Estava tudo ali. A cobertura elegante, os frisos nas laterais, os esguios estribos de acesso. Tudo ali, mas decrépito.


Houve um tempo em que se orgulhara da carruagem. Era uma bela Clarence. O cocheiro exibia vaidoso suas formas esguias, o vidro frontal imaculadamente limpo. Eles tinham uma conexão profunda, sabia disso. Mas sentia-se cansado dela.


Então o cocheiro percebeu, ao longe, os limites do campo delineados em profundo azul. Seus cabelos agitaram-se levemente. Era a brisa que vinha do mar, como carícia cálida. Por muitos e muitos anos julgou que conduzia a carruagem. Agora perguntava-se, levemente preocupado: para onde a Clarence está me levando?


Em algum lugar da carruagem, oculto, impensado, vivia um pássaro azul. Era um lugar secreto, indevassável, do qual o pássaro azul era cativo. Embora nada visse, o pássaro não se sentia prisioneiro. Tinha um profunda conexão com o cocheiro e com a carruagem. Cada pensamento do cocheiro era partilhado com ele. Cada sensação da carruagem também.


Quando o campo delineou, ao longe, o horizonte azulado, o pássaro soube exatamente para onde iam. Percebeu as perguntas do cocheiro e a insegurança instintiva da carruagem. Sentiu o vento deslizar pela porta da Clarence e afagar os cabelos do cocheiro. Era isso, então.


Cavalos foram muitos: tordilhos vistosos, bretões vigorosos, belos alazões, garranos duros e resistentes, até mesmo pôneis e alguns animais doentes. Eram a energia da carruagem, seu motor. Alguns permitiam galopadas épicas. Outros faziam a Clarence sofrer, arrastando-se pelas estradas como um espectro. A escolha das parelhas era sempre do cocheiro. Em muitas ocasiões a carruagem ressentiu-se de suas escolhas.


Também os passageiros passavam pelo crivo do cocheiro. A carruagem lembrava de muitos deles, mas não de todos. Era um desfile imenso de personagens diferentes, um caleidoscópio de intrusos alternando-se nos seus bancos de couro. Houve ébrios, entusiasmados sonhadores, tristes, chorosos desesperançados, invejosos, lúbricos, ambiciosos e violentos enlouquecidos. Alguns lhe faziam bem. Outros, sobretudo os violentos, deixavam marcas dolorosas.


No horizonte surgiu o despenhadeiro, uma falésia negra que conduzia ao mar dezenas de metros abaixo. As ondas bramiam espumantes, revelando pedras ásperas. A carruagem assustou-se, sentiu o perigo. E novamente ressentiu-se com o cocheiro.


O cocheiro tinha saudades dos tempos em que a Clarence era nova e luzidia. Nesta época, aceitava de bom grado qualquer parelha, mesmo os animais adoentados ou enfraquecidos por má alimentação. Com o tempo, cada vez mais o cocheiro tinha que ter cuidados na escolha dos cavalos, elegendo animais fortes e confiáveis. Do contrário, a carruagem apresentava desempenho pífio.


Já os passageiros, o cocheiro não os dominava. Antes era dominado por eles. Lascivos que o venciam por sedução; ambiciosos o tentavam com promessas; alegres sentavam-se nos bancos em meio a gracejos e eram sempre bem vindos; invejosos ministravam-lhe drogas secretas de sabor acre; violentos forçavam o ingresso à força de músculos e duros golpes. Só com o passar do tempo o cocheiro aprendeu a lidar com eles, timidamente, colocando os mesmos freios que punha aos cavalos. Ainda assim, vez por outra era surpreendido por um passageiro inesperado.


O cocheiro recebeu uma lufada de ar em cheio no rosto, rescendendo a maresia. Acompanhou o bramir do mar próximo, perigosamente próximo. Era o precipício que se aproximava. Assustado, tentou controlar a carruagem com todas suas forças.


Em sua secreta conexão com cocheiro e carruagem, o pássaro azul tudo dividiu. Cada parelha de cavalos que conduziu a carruagem, cada passageiro que nela deixou sua marca. Entendeu as escolhas do cocheiro e acompanhou de perto suas dificuldades em lidar com os passageiros. Sentiu, em meio a tudo, o sofrimento de ambos. Queria tranquilizar a Clarence, cochichar nos ouvidos do cocheiro que o segredo estava no desejo.


Apenas o pássaro azul recebeu o penhasco com alegre ansiedade. Só ele sabia o que viria depois, ou ao menos imaginava, como quem olha para dentro e vê uma esmaecida imagem no fundo da retina. Quando a queda veio, longa e vertiginosa, a carruagem tensionou o couro dos bancos e correias, liberou fluidos e energias esquecidas em suas fibras de madeira, aterrorizada com o crescimento das pedras vindo ao seu encontro. O cocheiro foi tomado por um delírio alucinado. Visualizou num instante outras carruagens que conhecera, os cocheiros que amara e um turbilhão de passageiros caiu junto com ele. Sempre soube que a queda no abismo era inevitável, mas não estava pronto para ela. Nos últimos segundos não pensou em nada, pois tudo era desespero em forma de interrogação.


O estrondo foi terrível. O silêncio que o seguiu também. Então, por alguma fenda que as pedras abriram na madeira da carruagem, o pássaro azul saiu e bateu asas. A luz era tão intensa que, a princípio, cegou-o. Ele permaneceu longamente adejando alguns metros acima do mar, cujas ondas lambiam as lascas de madeira, couro, ferro e vidro que antes formaram a Clarence. Quando a luz tornou-se suportável, contemplou o quadro. O que sobrou da carruagem era lavado pelo mar, que recolhia lentamente seus destroços e os conduzia ao seu fundo berço. O cocheiro havia desaparecido.


O pássaro azul encarou como pode a luz e achou-a incrivelmente bela. Assustadoramente bela. Monstruosamente bela. Tão bela que eriçou todas suas leves penas azuis, deixando-lhe um peso imenso nas asas. Sentiu que não poderia alçar-se até a luz. Era muito pequeno e estava confuso.


Foi então que, da luz, do mar, de ambos, uma forte corrente de ar envolveu o pássaro azul e conduziu-o numa velocidade vertiginosa por um passeio pela terra. Em segundos, cobriu montanhas, prados, rios, pântanos, saltou continentes como quem brinca de amarelinha. E súbito foi arrojado de encontro a uma carruagem novinha em folha, desta vez um Tílburi elegante de dois lugares. O cocheiro era jovem, desperto e tinha uma expressão alegre. O pássaro azul aconchegou-se em seu canto secreto e ouviu o cocheiro ordenar:


-- Eia!

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