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Foto do escritorHatsuo Fukuda

O TORTO E O DIREITO


Na Rua Paula Gomes esquina com a Rua Duque de Caxias, há um templo sagrado da cultura popular e da negritude.


Imagem de Hatsuo Fukuda.



Paro no Bar do Torto para tomar um guaraná e comer umas empadinhas. É final de tarde, e alguns poucos fregueses lá estão. Arlindo, folgado, joga sinuca com um freguês. Para o jogo para me servir o guaraná. Comento o sucesso da vinda de Rita Cadilac, ex-chacrete, na comemoração dos vinte anos. Ele conta que a pandemia foi terrível, mas precisava fazer algo para comemorar o aniversário do bar. Muita gente começou a namorar ali, trocou o primeiro beijo, casou e continua frequentando o botequim. A data não podia passar em branco. Centenas de pessoas, apesar da pouca divulgação, foram dar um abraço ao Arlindo.


O Torto não é apenas um bar. Ele se fantasia de botequim da periferia, com seu bolinho de carne, suas empadinhas, suas prateleiras de álcool barato (mas para quem quiser, há um Johnnie Walker Black), sua cerveja. Esta é a primeira impressão, para os desavisados sedentos. Para os moderninhos, o Torto é um bar temático, onde se perpetua a memória do grande jogador de futebol, Garrincha, cujas pernas tortas alegraram a vida de milhões de brasileiros. O Torto é o Brasil alegre, que faz da desgraça de suas pernas tortas um motivo de risada.


Uma outra encarnação do Torto é a do templo onde se cultua a cultura popular. Longe dos modismos tolos, no Torto as pessoas não têm medo de gostar daquilo que o povo gosta. Elza Soares, esta negra enxerida, é um símbolo de uma cultura que não tem medo de ser o que é. Assim como ela desafiou tudo e todos em seu amor ao Anjo de Pernas Tortas, o Torto a trata como aquilo que ela é: uma das maiores cantoras da música popular do Brasil. Desta forma, ícones da cultura popular, como as Irmãs Galvão, Odair José, Jerry Adriani e Ivone Lara foram trazidos a Curitiba pelo Torto, através da Quadra Cultural, invenção do Magrão, que também atende pelo nome de Arlindo. Além de Elza Soares, que foi até lá comer um bolinho de carne e chorar no balcão, emocionada com a homenagem prestada a Garrincha.


Em um país onde a cultura se divide entre aquela dos bem-pensantes e a do povo, o Torto não discrimina. Cultura é cultura, ainda que a academia e a classe média a ignore, como brega ou de mau gosto. Não no Torto. Velhos ídolos serão respeitados, porque permanecem na memória afetiva dos que os amaram, e nela permanecem, vivos. Mesmo que os preconceituosos digam que é brega.



Imagem de Hatsuo Fukuda



Lá no Torto, Garrincha e seu filho sueco são tratados como devem ser tratados os príncipes reais: com o respeito devido à nobreza. De alguma maneira, o Magrão – não sei como – descobre seu endereço e o traz a Curitiba, para que todos saibam que nesta nossa terrinha os príncipes são tratados com a majestade devida.


E para os que não entenderam nada, absolutamente nada, cegados pelo preconceito racial e cultural, o Torto é uma ode à negritude. Magrão, para quem não sabe, apesar de sua pele clara, tem sangue negro nas veias. Basta olhar para ele, e a marca racial está estampada em seu rosto. Nos Estados Unidos seria considerado black. No Brasil, com sua tradição de miscigenação racial, ele é branco. Mas o grande amor de sua vida, um anjo de pernas tortas, não deixa margem a dúvidas: Arlindo é negro, e fez de sua vida uma missão de homenagear um dos maiores símbolos da cultura negra do Brasil.


O Magrão, sorrindo e brincando com seus fregueses, despretensiosamente, transformou o seu bar no maior bastião da cultura negra e popular de Curitiba. Com todo respeito aos demais.


Pensando bem, o Torto não é torto, não é direito, não é preto nem branco; o Torto é sagrado.



O bar temático Torto é um dos grandes exemplos de como um empreendedor nato, que fez o MBA da vida, pode transformar de uma maneira radical a cidade. A Rua Paula Gomes era uma ruazinha abandonada, e transitar lá era uma aventura perigosa. Graças ao Torto tornou-se parte do centro boêmio da Rua São Francisco e Largo da Ordem. Vários bares seguiram o exemplo do Magrão e hoje estão lá estabelecidos, e toda a área foi revitalizada.

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