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Foto do escritorManuel Rosa de Almeida

O TÚNEL

Um conto de Manuel Rosa de Almeida sobre inocência e crescimento...


Marcelo olhava o túnel como quem contempla um ser assombroso. O grande arco de concreto eram dentes que contornavam a boca escura e profunda de um ser absurdamente longo. Uma gigantesca cobra, talvez. Por cima dos dentes havia vegetação luxuriante, a pele daquele demônio, formada por capim e arbustos que se contorciam ao sabor do vento. O interior daquela bocarra expelia um hálito quente e ruídos estranhos. O garoto achou que de algum modo havia maldade naquilo.


Os meninos foram na frente. Ele ficou para trás, com ordens severas de segui-los só depois de meia hora. Obedeceu. Agora estava ali, postado sobre os dormentes da ferrovia, procurando encontrar coragem para o desafio. Tinha ainda que esperar, talvez dez minutos. Não sabia dizer se isso era bom ou mau. Mas jamais se atreveria a desconsiderar o conselho do irmão mais velho.


-- Só entre depois que o trem passar – explicou Camilo. – Não importa se for só um vagonete de manutenção. Espera algo passar primeiro, daí você segue. Garanto que tem pelo menos quinze minutos.


Pensou em seguir correndo atrás do trem, para vencer logo a provação. Mas o irmão dissera que não era boa ideia. Os dormentes são meio irregulares, falou, vai tropeçar no escuro e esfolar o joelho nas britas. O túnel era longo, mais de oitocentos metros. Pra piorar, o bicho se contorcia numa curva para a esquerda, o que produzia um trecho de duzentos metros da mais negra escuridão. Só de pensar em andar lentamente por estes duzentos metros sentia calafrios.


-- Bosta – resmungou. – Bosta de vaca! Bosta de cavalo!


Riu sozinho dos palavrões, por puro nervosismo. E o riso fez com que esquecesse a preocupação por alguns segundos. Pensou que talvez os malucos rissem para não sentir medo. Mas não tinha como forçar-se a rir quando estivesse atravessando aquele túnel.


Censurou-se dizendo que já devia estar pronto pra isso. Há pelo menos dois meses os meninos vinham avisando que o teste estava chegando.


-- Vai fazer dez anos. Está pronto para o túnel? – Perguntou Danilo.


-- Não sei.


-- É bom estar. Não tem jeito, Marcelo.


-- Por que tenho que fazer isso? – Protestou.


-- É um rito de passagem. – Disse Alexandre solenemente.


Alexandre era o mais velho. Já tinha treze anos. Marcelo admirava sua inteligência e achava que com treze anos as pessoas sabiam das coisas. Por isso, quando Alexandre explicou melhor, prestou toda atenção.


-- Nas tribos africanas, para que um menino passe a ser homem, tem que enfrentar um rito de passagem. Uma prova de coragem.


-- É pena que não bastem passar os anos – lamentou Camilo.


-- Claro que não – retrucou Alexandre. – Ficar mais velho não faz de você um homem. Para ser homem é preciso coragem. Demonstrar coragem.


-- Passando pelo túnel... – lamentou Marcelo.


-- Podia ser bem pior – continuou o mais velho. – Há tribos africanas que fazem você pular de uma árvore de vinte metros de altura amarrado por um cipó no tornozelo. Os moleques quase perdem a perna!


-- Ôrra... – espantou-se Danilo.


-- Em outras tribos o menino tem que caçar um leão, armado só com uma lança.


-- Mas isso é impossível! – Duvidou Camilo.


-- Muitos morrem tentando. Mas isso é melhor do que a vergonha de não tentar.


Vergonha. Era isso que o aguardava se não enfrentasse o túnel. Iriam rir dele, caçoar, chamá-lo de menininha. E nunca seria considerado um homem. Afinal, todos meninos já tinham enfrentado o túnel, cada um no seu tempo. E Camilo jurava que não era tão difícil, bastava ir pondo um passo atrás do outro.


-- E nós estaremos do outro lado para receber você – disse o irmão encorajando-o.


-- Se ele chegar do outro lado – completou Danilo.


Danilo contava histórias terríveis sobre o túnel. O irmão garantia que eram bobagens, mas ele contava com olhos arregalados, convicção na voz e minúcias nos detalhes. Marcelo tremia, porque todos aqueles detalhes não podiam ser pura invenção, deviam ter um fundo de verdade.


-- Há muitos animais que gostam da escuridão e umidade do túnel – dizia Danilo. – Cobras rastejam pelo chão e aranhas caranguejeiras penduram-se das paredes. Algumas chegam a fechar o túnel com suas teias. Quando você se enfia numa teia dessas, fica grudado. Aí as aranhas descem para chupar seu sangue. E tem também ratazanas brancas do tamanho de vira-latas que correm pelas canaletas laterais...


Marcelo repetia as histórias para o irmão, apavorado. Camilo balançava a cabeça e dava risada:


-- Ele tá brincando com você, bocó.


-- Será?


-- Eu passei pelo túnel algumas vezes e nunca vi nada disso. E pensa bem... Como uma aranha vai ter tempo de fazer a teia se passa um trem a cada meia hora?


Marcelo tranquilizava-se, até ouvir outra história fantasmagórica.


-- Na parte escura do túnel – dizia Danilo – existem portas secretas. É por isso que muitos garotos nunca atingem o outro lado. As portas se abrem e estranhos seres arrastam eles para a escuridão do interior da montanha.


-- Meu Deus...


-- Ninguém sabe o que acontece lá dentro. Alguns dizem que os meninos são feitos escravos, para trabalhar nas minas. Outros dizem que os habitantes da montanha devoram os prisioneiros em grandes banquetes.


-- Mentiroso! – Atacou Marcelo trêmulo de medo.


-- Mentira? Em duas vezes que cruzei o túnel escutei ruídos estranhos atrás das paredes. Pareciam abafados gritos de socorro...


Agora Marcelo esforçava-se para não pensar nas histórias de Danilo. Abaixou-se e colou o ouvido nos trilhos. Diziam que dava pra ouvir a aproximação de um trem a quilômetros de distância. Ele não ouviu nada. Chateado, sentou-se e começou a jogar britas na placa que havia na entrada do túnel: APITE. A placa produzia um fugaz ruído metálico quando atingida. O ruído parecia entrar direto pelo túnel e perder-se lá dentro.


A espera punha-o nervoso. Sabia que devia esperar o trem, para não correr o risco de ser surpreendido pela composição no interior do túnel. O irmão dizia que mesmo assim não haveria perigo, pois bastava deitar-se nas canaletas que drenavam a água dos dois lados da via férrea. Mas a ideia de deitar-se na canaleta, enquanto um gigante de aço passava guinchando a meio metro de distância, não lhe agradava nem um pouco. Depois de ouvir falar nas ratazanas brancas do tamanho de vira-latas, a mera possibilidade passou a aterrorizá-lo. Preferia esperar pacientemente. Uma hora o trem viria.


Veio cinco minutos depois. Marcelo colocou-se ao largo da via quando ouviu os primeiros ruídos se aproximando. Atrás, numa curva distante, finalmente apareceu a locomotiva, um colosso vermelho com o farol aceso, como olho de ciclope. A cem metros do túnel, soou o apito. Marcelo chegou a cobrir os ouvidos com as mãos, pois o barulho era ensurdecedor. Então o trem passou por ele e enfiou-se pelo túnel, uma longa composição de mais de vinte e cinco vagões cargueiros. Goela adentro da cobra, pensou Marcelo, uma baita refeição.


Pôs-se a caminhar atrás do último vagão, assim que sumiu na escuridão. Sabia que não podia hesitar, pois o tempo de segurança durava alguns minutos. Pelo menos quinze, garantiu Camilo. O primeiro trecho ainda recebia boa luz, de modo que não apresentava maiores dificuldades. Ele avançou em passos firmes, concentrado, impressionado com o número de goteiras que havia no teto do túnel. De algum modo, a umidade captada pelo morro que se projetava acima enfiava-se pelo concreto para libertar-se em inúmeras goteiras. O túnel chorava.


Cerca de duzentos metros adiante, quando a luminosidade já havia declinado consideravelmente, ele parou. Até ali não havia encontrado nenhum dos animais citados por Danilo, portanto devia ser mesmo mentira. Ou talvez preferissem a escuridão que havia adiante. Marcelo virou-se e ficou espantado com a visão distante da entrada do túnel. Uma pequena secção de cilindro, brilhante de luz, lá ao longe. Lembrou-se que não tinha tempo a perder, devia seguir. Prosseguiu lentamente, como Camilo disse, sempre em frente.


-- Um passo depois do outro – repetiu para si mesmo.


As palavras reverberaram na escuridão, metálicas. Em certo ponto percebeu que não enxergava um palmo diante do nariz. Virou-se. Já não via mais a entrada do túnel. Virou-se novamente, assustado com a possibilidade de perder o senso de direção e começar a seguir no sentido contrário. Colocou a palma da mão direita bem diante dos olhos e não conseguiu ver coisa alguma. É assim que uma pessoa cega se sente, pensou amargurado. Agora que estava parado, fazia um silêncio opressivo, quebrado apenas pelo gotejar que vinha do teto.


Quis dar mais um passo e não conseguiu. Tentou novamente e nada. Tinha travado. Travado de medo, como Alexandre disse que acontecia com muitos meninos. O rapaz mais velho, do alto da sabedoria de seus treze anos, explicou o que deveria fazer caso isso acontecesse. Bastava apenas ter força de vontade, pensar em alguma coisa realmente boa e seguir em frente. Marcelo focou-se no ensinamento: Paçoca... Sorvete... Sorvete com paçoca... Foram os pensamentos que lhe ocorreram. Mas não funcionou. Na verdade, precisava admitir que nunca antes na vida sentiu medo assim gigantesco, ao ponto de paralisar os membros e arrepiar a coluna. As histórias de Danilo assaltavam sua mente, incontroláveis, rompendo os diques de contenção que ele tentava antepor. Banho de rio... Praia... Futebol... Inútil. A cabeça estava tomada por caranguejeiras e ratazanas brancas. Súbito, pensou ouvir o ruído de uma laje se movendo. Aquilo eriçou os cabelos da nuca, como se a própria morte tivesse ali depositado um beijo. Uma gota gelada caiu na sua cabeça. Então Marcelo correu.


Correu, mesmo sabendo que não devia, em meio à completa escuridão. Correu como podia, roçando tornozelos no trilhos, claudicando cego por sobre os dormentes. E como Camilo prevenira, acabou tropeçando e ralando o joelho nas britas. Aquilo doeu:


-- Aiii! Filha da puta!


Gemido e palavrão reverberaram no túnel. Marcelo viu-se ajoelhado, em meio à via férrea, absorvido pelo mais profundo breu. Olhou para os dois lados. Nenhum sinal de entrada ou saída do túnel. O mundo era um negro absoluto. Apesar da vontade, não se permitiu chorar. Os meninos eram hábeis em identificar sinais de choro nos olhos, um risco de lágrima, o tom avermelhado na esclerótica. Podia até ouvi-los dizendo: se chorou, não é homem. Vai ter que passar pelo teste de novo! Sentou-se, abraçando as pernas, desesperançado. Foi então que o pai veio socorrê-lo, magicamente, pelas asas da memória.


-- O medo é o pior dos tiranos – lembrou o timbre da voz poderosa do pai. – Pode tirar tudo de você, se você deixar. Rouba sua liberdade, sua paz de espírito, seu gosto de viver. E vai te infernizar quando você menos espera.


-- Você já teve medo, pai?


-- Várias vezes. Todo mundo tem.


O pai estava lançado numa espreguiçadeira, na varanda da casa da praia. Marcelo balançava numa rede ao lado. O assunto surgiu porque ele contava ao pai o terror que alguns valentões espalhavam na escola onde estudava.


-- Sempre tive medo de cobras, – continuou o pai, ruminando lembranças -- desde que pisei numa jararaca na fazenda do seu avô. Olhei pra baixo e a maldita tinha enrolado na minha canela. Levei o maior susto da minha vida. Dei um pulo e um coice no ar. A cobra soltou-se e sumiu na grama alta. A única explicação é que pisei bem na cabeça da cobra. Por isso não fui picado, verdadeiro milagre...


-- E o que você fez?


-- Aí é que está – respondeu o pai, virando-se para encarar Marcelo. -- Há coisas que vencemos nos entregando a elas. Com o sono é assim, não adianta lutar contra. O medo é diferente. A única forma de vencê-lo é enfrentá-lo. Encarar as coisas que lhe causam medo. Quanto mais fugir dele, mais poder ele terá. Vai crescer até o ponto de consumir você... O que eu fiz? Toda vez que encontravam uma cobra, eu ia junto enfrentar o bicho, por mais medo que tivesse. Assim o medo foi diminuindo, diminuído...


Marcelo pensou que estava enfrentando seus medos agora, mas não parecia que diminuíam. De qualquer modo, a lembrança daquela ensolarada conversa na praia deu-lhe forças para levantar e repetir o ritual que aprendera com Camilo.


-- Um passo atrás do outro – prosseguiu em frente.


O joelho ardia. Ainda uma vez assustou-se com a explosão gelada de uma gota em seu ombro, mas não parou mais. Então, lentamente, a claridade surgiu. A princípio quase uma ilusão, um desejo. Mas, passo atrás de passo, a luz foi retomando território. Marcelo, profundamente aliviado, já via seus pés. Ao longe, a saída do túnel finalmente apareceu, pequena, mas brilhante como a visão de um oásis.


Três minutos depois emergiu do túnel. A visão da floresta verde ganhou um encanto especial. O céu nunca pareceu tão azul. Percebeu que os meninos não estavam lá. Começava a julgar que se confundiu no tombo e tomou o caminho da entrada, quando os três pularam do mato em volta, gritando feito índios. Pularam em torno dele, comemorando e parabenizando-o com pancadas na cabeça. Pela primeira vez na sua vida, Marcelo teve consciência da felicidade, um inebriante e fugaz momento no caminho da vida.


-- O ritual está cumprido – anunciou Alexandre. – Um menino entrou no túnel. Um homem saiu dele.


Marcelo estufou o peito. Agora era um homem. Em seguida, os quatro voltaram para casa cruzando o túnel em sentido contrário. Ele espantou-se ao perceber que já não sentia medo algum, talvez pela companhia, pelas bobagens que os amigos diziam ao caminhar. Quando atingiram o centro do túnel, dominado por profunda escuridão, Marcelo perguntou:


-- Onde estão os bichos que você falou, Danilo?


-- São espertos. Não se atrevem a enfrentar nós quatro.


-- E por que não vi nada quando atravessei sozinho?


-- Sorte – respondeu o outro simplesmente.


Quando já viam a boca iluminada do túnel, Marcelo sentia-se tão feliz que saiu correndo na frente, lançando um desafio:


-- O último que sair é mulher do padre!


Ouviu os três correndo atrás dele e, pouco depois, o som inconfundível de alguém levando um tombo.


-- Aiii! Filha da puta! – Gritou Danilo.


Os outros três seguiram em frente, entre gargalhadas.

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