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Foto do escritorHatsuo Fukuda

POLENTA, GASOSA E ANARQUIA

Como a história se faz com consequências inesperadas: da anarquia veio a gasosa.

Imagem aérea da praça que homenageia a Colônia Cecília em Palmeira.



Em todo Brasil, bebe-se tubaína. Em Curitiba bebe-se gasosa. E todos sabem por quê. A curitibanice toma Gasosa Cini desde criancinha, e resiste, energicamente, à ideia de tomar tubaína, como muitas vezes presenciei. Eu mesmo, embora paulista – vim para Curitiba aos sete anos – só me dei conta dessa idiossincrasia curitibana em contato com meus primos que lá ficaram na terrinha. Eles, é claro, tomavam tubaína. Mas em Curitiba a Gasosa Cini era onipresente no almoço de domingo da família (4 garrafas, a serem divididas por cinco filhos e os pais). As crianças disputavam os sabores, cada um com sua preferência.


Curioso é saber que o patriarca e fundador da empresa, Egizio Cini, era um anarquista vindo da Colônia Cecília, em Palmeira – e um de seus líderes – com convicções profundamente anticapitalistas. Uma das maiores e das mais tradicionais empresas do Estado teve sua origem no experimento anarquista da Colônia Cecília, eis um dos paradoxos da história. O valente, enérgico e doutrinário jovem italiano que deixou sua pátria para ajudar a construir um mundo sem leis e sem patrões, tornou-se ele próprio um deles, para alegria de todas as crianças sedentas nos almoços de domingo.


Após o final do experimento anarquista, Egizio Cini, que se notabilizou na colônia pela sua inventividade mecânica – ele construiu o moinho de fubá que salvou a colônia da fome, em um momento difícil – com isso garantindo a polenta de todos os dias - mudou-se para Curitiba, onde se dedicou a propagar os ideais anarquistas em um jornal de vida curta, Il Diritto, e, para ganhar a vida – anarquista ou capitalista, todos têm de comer – passou a fabricar cerveja e gasosa. Em determinado momento, a crise mundial o obrigou a interromper a produção da cerveja, e a gasosa tornou-se o carro-chefe do empreendimento. Mais tarde, seu filho Hugo, nascido na Colônia, tornou-se seu dirigente.


Leio no livro Colônia Cecília, de Arnoldo Monteiro Bach, que Il Diritto Libertário fundado por ele em 1899, em Curitiba, estampava um subtítulo: “Periódico Comunista-Anárchico”, e dirigia um apelo aos operários: “Todos aqueles que receberem maus tratos dos assim chamados patrões, são convidados a informar esta administração a fim de que pelas colunas deste jornal possa valer os direitos dos disfructadores”. O jornal era editado em italiano e estava instalado na Rua Silva Jardim, 60. Se você percorrer a Silva Jardim, naquele trecho, encontrará um quartel do Exército. Talvez tenha sido lá o endereço libertário, ou no terreno onde hoje é o estacionamento da Cassol. Pouco importa, naquele local um dia floresceu o ideal de uma sociedade sem classes e sem hierarquia, onde homens e mulheres conviveriam em harmonia.


Folheando o livro de Bach, olhando as fotos das famílias dos pioneiros, o coração se confrange e se alegra. São retratos em preto e branco que documentam as vidas de tantos que lá estiveram: os Cini, os Benedetti, os Arrighini, os Zanetti, os Agottani, os Mezzadri, os Artusi, os Maderna, os Gattai. Alguns adquiriram proeminência na sociedade que os acolheu, ficaram famosos ou ricos, como Zélia Gattai, a escritora (autora de Anarquistas, Graças a Deus), ou Hugo Cini; a maioria, simplesmente (!) fecundou a sociedade palmeirense (onde muitos ainda vivem) e brasileira, na diáspora que se seguiu ao fim do experimento. Aquele foco de energia, vivacidade, idealismo, quando explodiu, iluminou todos os lugares onde aportou.


Estive em Palmeira, há poucas semanas, com amigos. Saindo da cidade, percorre-se um trecho de asfalto, e a seguir se entra em uma estrada de terra, bem conservada. Uma bela paisagem. Palmeira e seus arredores é uma cidade bonita, aprazível e bem cuidada. Passa-se pela Colônia Santa Bárbara, originalmente uma colônia de imigrantes poloneses; um pouco adiante, à margem da estrada, uma pequena praça homenageia a Colônia Cecília. No centro da praça, um busto de Giovani Rossi, o líder do empreendimento, e alguns painéis em ladrilhos exaltam os ideais anarquistas. A praça pede um pouco de cuidados, talvez um museu, e uma lojinha para venda de produtos aos turistas; uma sinalização melhor, na estrada, seria recomendável, mas é de fácil acesso. Saindo de Curitiba, dependendo da destreza do motorista, chega-se em uma hora. Depois, um almoço no restaurante Girassol, recomendado por um amigo que conhecia o local. Abrimos uma garrafa de vinho tinto e brindamos aos loucos que semeiam a terra.



Colônia Cecília, o livro de Arnoldo Monteiro Bach, historiador palmeirense (que comprei no restaurante Girassol, em Palmeira), é fonte indispensável para conhecer a história da colônia e de seus descendentes. Deve ter exigido um trabalho bárbaro. É um calhamaço de 1057 páginas, mas é altamente legível. Nele me socorri para escrever esta crônica. Nada falei sobre Giovani Rossi, seu fundador e líder. Como diriam os antigos, a vida de Rossi daria um filme (amor, luta, batalhas, altruísmo, etc, etc.). Na realidade, uma novela, daquelas da Globo, quilométrica em extensão, tantos episódios interessantes ele viveu. Ele escreveu um livro, Colônia Cecília e outras utopias, ótimo de ler. Era um líder, e escrevia para ser entendido pelas pessoas. Aguarde, neste blog, um artigo sobre Rossi e sua vida amorosa. Italianíssimo. Melhor impossível.

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