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Arthur de Lacerda Neto

Positivismo e “positivismo” jurídico.


Inexiste influência do Positivismo no normativismo e vice-versa, nem decorre o segundo do primeiro, direta ou indiretamente.

Imagem de PIYA BO-NGULUAM por Pixabay


Desinformação freqüentíssima é a em que incorre o pessoal jurídico: estudantes, doutrinadores e professores de Direito; advogados, juízes, promotores; mestrandos e mestres, doutorandos e doutores em Direito, identificam o Positivismo com o “positivismo” jurídico ou juspositivismo.


Positivismo significa a doutrina criada por Augusto Comte, que, autor também do termo positivismo, empregou-o para designá-la. A ela pertence, legitimamente, este vocábulo, que outras correntes adotaram, ou que lhes imputaram, como é o caso de “positivismo jurídico” ou juspositivismo. Dessa designação analógica resulta que os desavisados tratam a ambas como se correspondessem ao mesmo conteúdo, imputam ao Positivismo o que pertence ao “positivismo” jurídico, atacam aquele por conta deste, repugnam-se do primeiro por repugnarem-se do segundo.


A expressão “positivismo” jurídico designa concepção própria e exclusiva do Direito, segundo a qual existe apenas o direito positivo, vale dizer, legislado, enquanto norma originária do Estado, pelo que, no intuito de evitarem-se o homonimato e a confusão que ele provoca, é aconselhável substituirem-se as designações de positivismo jurídico e de juspositivismo, pela de normativismo.


A confusão entre Positivismo e normativismo é grosseira: salvo seu infeliz homonimato, nada entre eles existe de comum, seja como doutrina, seja como influência de um sobre o outro, exceto a rejeição do direito natural, e ainda assim, como interpretação do primeiro e não como sua tese explícita.


O Positivismo corresponde a doutrina filosófica, concebida por Augusto Comte, de que resultou a constituição do pensamento humano em estado de positividade, a criação da sociologia, o estudo das condições de existência das sociedades, a descrição da evolução histórica da Humanidade, a instituição de religião humanista e de projeto de organização social.


O normativismo designa doutrina jurídica constituída por João Austin, segundo a qual o Direito equivale, exclusivamente, à norma legislada.


O Positivismo não se ocupa, absolutamente, do Direito, como norma, como doutrina, como produto social, como objeto de estudo, de interpretação, de doutrinamento, ao passo que o normativismo ocupa-se, exclusivamente, do Direito, como norma e como objeto de estudo.


O Positivismo corresponde à obra pessoal de Augusto Comte; o normativismo, à de Austin, de Bentham, de Kelsen e de outros doutrinadores.


O Positivismo teve por precursores a filósofos e cientistas que Comte nomeia, a saber: Hume, Kant, Condorcet, de Maistre, Bichat, Gall, Bacon, Descartes, Leibnitz, Tomás de Aquino, Rogério Bacon, Dante, Aristóteles.


O normativismo teve por precursores a juristas, como Gustavo Hugo, Thibaut, Duranton, Aubry, Troplong; teve por instituidor a João Austin e por epígono célebre, a João Kelsen.


O Positivismo constituiu-se com base nos escritos de Comte, que se distribuem em três grupos:


1- o dos escritos de juventude, de 1819 a 1826, em que ele dissertou sobre o Poder Espiritual, a evolução histórica da Humanidade, um livro de medicina de Broussais, a reorganização social, os cientistas e as ciências.


2- O da fase intelectual, correspondente ao Curso de Filosofia Positiva, que principiou a professar em 1824 e que publicou de 1830 a 1842, em que trata da matemática, da astronomia, da física, da química, da física, da biologia, da sociologia, da história da humanidade, do estado das sociedades suas contemporâneas, da tendência de evolução delas.


3- O da fase religiosa, em que publicou, de 1850 a 1856, o Sistema de Política Positiva, o Apelo aos conservadores, o Catecismo positivista, o tomo primeiro da Síntese subjetiva, cujos conteúdos correspondem à constituição da sociedade organizada segundo o seu pensamento, ao estudo do poder espiritual, da linguagem, da propriedade, da família, do governo, da religião, à instituição da religião da Humanidade, à projeto de ação política, à filosofia matemática.


Em momento nenhum, em nenhuma das suas obras, tratou do direito como legislação, doutrina, nem como domínio do saber humano.


O normativismo constituiu-se com base no livro de João Austin, A determinação do campo da jurisprudência; com base na escola da exegese, encarnada em Alexandre Duranton, Carlos Aubry, Frederico Rau, João Demolombe e Troplong; com base nos livros de matéria jurídica de Jeremias Bentham; com base na Teoria Pura do Direito, de João Kelsen, e com base em outros autores.


A produção jurídica de Bentham data de 1802, quando Comte contava quatro anos de idade; a de Austin, de

1802, quando Comte publicara os seus textos juvenis, em periódicos, e a filosofia matemática; a Teoria Pura do Direito nenhum traço de Positivismo apresenta; as obras da escola da exegese consistem na explicação do Código Civil francês de seu tempo. Jamais, em momento algum, nem Bentham, nem Austin, nem Kelsen nem os mentores da escola da exegese reconheceram-se como discípulos de Comte, como tampouco, em toda a bibliografia do Positivismo, existe a menor referência a eles, prova de que se trata de doutrinas que não apenas não se influenciaram, como ainda ignoraram-se.


Comte jamais se ocupou de filosofia e da ciência jurídicas; o máximo que se encontra, em suas obras, relativamente ao Direito, é a indicação da necessidade de substituir-se a noção de direito, individual e egocêntrica, pela, social, de dever, sem que de suas palavras possa-se deduzir, direta ou indiretamente, a doutrina do normativismo. Em parte alguma das obras dos seus discípulos encontra-se a mais superficial manifestação de normativismo, a menos que se repute normativista quem reconheça a necessidade de leis escritas, originárias do Estado e de obediência necessária: à essa luz, é normativista até o mais acirrado anti-normativista.


Percorram-se as obras de Miguel Lemos, de Teixeira Mendes, de Ivan Lins, de Emílio Littré, de Gregório Wiroubouff, de Pedro Laffitte; percorram-se as dezenas de volumes da Revue Occidentale (periódico positivista publicada por décadas em França): em momento algum encontrar-se-á nelas qualquer elemento normativista. De raro em raro, topam-se referências ao direito como noção a que o Positivismo contrapõe a de dever.


O normativismo adota como princípios: 1- deve-se tratar o direito como facto e não como valor; 2- o direito vigora pela imposição, 3- o direito corresponde a textos legislativos, 4- a norma corresponde a comando imperativo, 5- existe sistema completo e coerente de normas, 6- a exegese é meramente declaradora do conteúdo da lei, 7- deve-se obediência estrita à lei. Nada disso se encontra nos textos de Comte; nada disso corresponde a seus temas.


Entre os pontos de Comte e os do normativismo não existe nenhuma coincidência: Comte escreveu sobre matérias alheias às dele, que versa temas alheios aos de Comte; sequer o uso do termo positivismo decorreu de analogia com o Positivismo: a expressão “positivismo” jurídico resultou da obra de Gustavo Hugo, Tratado do direito natural como filosofia de direito positivo, de 1798 (ano do nascimento de Comte) e da qual João Austin adotou a expressão “direito positivo”, como subtítulo (A filosofia do direito positivo) da sua obra.


Em suma:


1- Inexiste influência do Positivismo no normativismo e vice-versa, nem decorre o segundo do primeiro, direta ou indiretamente; no máximo, terá havido alguma influência meramente individual, do primeiro, em obras de autores adeptos do segundo, porém jamais quanto à doutrina própria deste, no sentido de estabelecer concordâncias entre si.


2- Resultou cada um de predecessores e de instituidores diferentes.


3- Eles ocupam-se de temas distintos.


4- Não há identidades entre ambos, salvo na sua comum recusa do direito natural.


5- Cumpre erradicar a identificação errônea do “positivismo” jurídico com o Positivismo, pela conservação do termo Positivismo para o seu legítimo titular e a vulgarização do nome normativismo, em substituição das expressões positivismo jurídico e juspositivismo.


Autor de excelente estudo histórico e dogmático do normativismo, assim esclarece Norberto Bobbio: “A expressão “positivismo jurídico” não deriva daquela de “positivismo” em sentido filosófico [...] em suas origens [...] nada tem a ver com o positivismo filosófico – tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão “positivismo jurídico” deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural” (O positivismo jurídico, N. Bobbio, página 15), “embora no século passado [XIX] tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico”, o que mantém a distinção entre Positivismo e normativismo e, ao afirmar que alguns adeptos do normativismo eram-no do Positivismo, assere, indiretamente, que nem todos os filiados ao primeiro eram-no ao segundo e vice-versa e que, portanto, inexiste inerência entre ambos.


Aos temas do Positivismo acha-se ausente, de todo em todo, o direito, como regra, como objeto de exegese, como objeto de doutrinamento e de legislação. As únicas referências, em toda a obra de Comte, ao direito, são ligeiras, limitam-se a breves linhas e correspondem à afirmação da necessidade de substituir-se o conceito de direito pelo de dever.


Esclarecedoramente, explica Bobbio, quanto ao normativismo: “O momento ideológico tem, enfim, uma importância notável junto aos juspositivistas alemães da segunda metade do século transcorrido, que sofreram a influência da concepção hegeliana do Estado. Segundo esta concepção (dita do Estado ético), o Estado não tem um puro valor técnico, não é um simples instrumento de realização dos fins dos indivíduos (como é no pensamento liberal), mas um valor ético, é a manifestação suprema do Espírito no seu devir histórico e portanto é ele mesmo o fim último ao qual os indivíduos estão subordinados. É evidente que tal modo de entender o Estado não é uma teoria, mas uma ideologia, visto que descreve não o Estado assim como ele é, mas como se desejaria que fosse. Ora, tal concepção (que foi chamada de estatolatria, porque é uma verdadeira adoração do Estado), encontra confluência no juspositivsmo alemão que, desse ponto de vista, deve ser considerado também como uma ideologia.”


Adiante: “[...] o positivismo jurídico foi considerado como uma das causas que provocaram ou favoreceram o advento dos regimes totalitários europeus e,em particular, do nazismo alemão.


É natural que uma crítica deste gênero, que queira denunciar as conseqüências moral e socialmente negativas do juspositivismo (a este propósito se falou polemicamente de uma reductio ad Hitlerum de tal doutrina), haja tido na opinião pública uma ressonância muito maior do que a crítica conduzida contra o seu aspecto científico”.


O normativismo induziu à estatolatria, à adoração do Estado, aos regimes totalitários europeus, ao nazismo alemão, por influxo da obra de Hegel, enquanto o Positivismo, doutrina de liberdades, opõe-se a todas as formas de totalitarismo.


No Brasil, muitos “conservadores” e olavinhos (sequazes do finado Olavo de Carvalho), e também juristas incautos, increpam o Positivismo de exaltar o Estado, de impor submissão incondicional à lei, de consagrar os despotismos, de haver conduzido ao nazismo. Eles: (a) confundem doutrinas diferentes; (b) revelam ignorância; (c) caluniam a doutrina de fraternidade e de liberdade que é o Positivismo; (d) não sabem o que diz, por mais pretensamente eruditas que sejam suas fontes.


Para ser conhecido a sério, o Positivismo há de ser procurado na própria obra de Comte, na de seus discípulos franceses (como Pedro Laffitte), ingleses (a exemplo de Ricardo Congreve e Frederico Harrison), chilenos (como João Henrique e Luís Lagarrigue). Dentre os brasileiros avultam as figuras cimeiras de Raimundo Teixeira Mendes e de Miguel Lemos; são-lhe expoentes Ivan Lins, Carlos Torres Gonçalves, Rondon.


Augusto Comte e João Austin conheceram-se pessoalmente, por intermédio de João Stuart Mill, algumas semanas antes de 23 de dezembro de 1843, segundo informação epistolar daquela data, em que o primeiro participava ao último haver recebido visita do segundo. Ao retribuir-lha, Comte travou relações com Sara Austin (mulher de João Austin), com quem se carteou várias vezes, em 1843 e 1844.


Certa passagem de uma das missivas de Sara Austin mereceu, de Comte, reprodução no prefácio do tomo primeiro de seu Sistema de Política Positiva (página 21). Ela tratava do papel por ele atribuído às mulheres, em seu Discurso sobre o conjunto do Positivismo: Sobre esse assunto, não há senão o senhor. Os outros, ou dão à mulher posição subalterna, subordinada às necessidades materiais do homem, ou atribuem-lhe uma fora da sua natureza e de seus instintos. Só o senhor sabe combinar-lhe a dignidade moral e intelectual como companheira, com sua natureza física e moralmente dependente. Enfim, o senhor concebe o laço conjugal, que encerra submissão e influência, pureza e ternura.


Aos 20 de julho de 1844, Comte escrevia a João Austin, sobre o seu A determinação do campo da jurisprudência: “[...] li-o com profundo interesse; além de muito felizes apreciações parciais, entre elas a de Hobbes, observei nele, especialmente, luminosas discussões sobre a doutrina da utilidade geral, sobre a necessidade intimamente sentida de uma larga e sã instrução popular, sobre a exata análise da soberania etc.;sem falar, aliás, do programa final que apresenta, pela primeira vez, creio, sobre o corpo inteiro do direito, uma opinião judiciosamente sistemática, cuja realização normal é muito lamentável que não haja ainda se verificado. O sentimento contínuo de perfeita lealdade e de verdadeiro amor do bem público sustentam, aliás, facilmente, a atenção prolongada que exige tal leitura.


Dois dias após, escrevia à mulher do jurista: Já testemunhei ao senhor Austin o quanto satisfez-me esta interessante produção de um espírito direito, de um caráter leal e de um coração devotado, em que se encontram, a vários respeitos, tantas discussões notáveis e judiciosas apreciações. É lamentável que o programa final, que indica, pela primeira vez, creio, uma concepção tão felizmente sistemática do conjunto do direito, não se haja ainda podido realizar convenientemente.


Aludia à codificação, nos termos em que Austin a propunha. Embora, portanto, Comte conhecesse a obra fundadora do normativismo e reconhecesse-lhe méritos, não se lhe tornou adepto e, sobretudo, não incorporou à sua obra os princípios dela.


Representa o normativismo expressão do Positivismo? A resposta é certíssima: não, porquanto pertencem a âmbitos heterogêneos do pensamento humano, porque o teor do primeiro não decorre do conteúdo do segundo; porque este é historicamente posterior àquele, quanto às obras de Bentham e de Austin; porque, quando coevos, as obras normativistas e as de Comte versavam sobre temas reciprocamente estranhos; porque o normativismo constituiu-se como corpo doutrinário autônomo, que principiou antes de Comte produzir suas obras e que se desenvolveu fora delas.


Representa o Positivismo expressão do normativismo? A resposta é certíssima: não; prova-o o conteúdo das obras de Augusto Comte. Quem duvidar da resposta, leia-as.


Em suma: a associação, corriqueira no Brasil, entre Positivismo e normativismo, não existe.



(Os prenomes são traduzíveis; traduzidos, chamam-se exônimos ou, especificamente, exantropônimos. Não passa de superstição de décadas recentes pensar que devemos empregar os prenomes no idioma de origem da pessoa; ao contrário, podemos traduzir Pierre por Pedro, John por João, Auguste por Augusto, consoante, aliás, o uso inveterado de vários países, inclusivamente o Brasil, até o advento da dita superstição, que aqui contrario. Os prenomes no texto acham-se traduzidos em português).


Fontes:

O positivismo jurídico. Norberto Bobbio. Ícone Editora, São Paulo, 1996.

Revue Occidentale. Paris, 1898 e 1899.

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