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SÓ TINHA QUE SER COM VOCÊ


O documentário Elis e Tom, só tinha que ser com você, está em cartaz nos cinemas, lembrando o encontro de dois monstros sagrados da música popular brasileira.


Imagem promocional.


O grande acontecimento do ano talvez seja este: o lançamento do documentário celebrando os cinquenta anos da gravação do disco Elis & Tom, de 1974. Está em cartaz nos cinemas de todo o país. Esqueça a posse de Lula, os julgamentos do Supremo, o gradual cerco aos meliantes que quase destruíram o país, as habituais negociações políticas em Brasília. Tudo isso é nada perto deste filme magistral, que documenta um momento raro na história do Brasil, em que duas personalidades completamente diferentes se juntaram para fazer um dos maiores discos já produzidos no país (ou o segundo maior, talvez).


A música popular talvez seja a maior prova que o Brasil pode apresentar para justificar a sua existência no mundo. Sua diversidade, sua exuberância, sua qualidade, só perdem para a grande música popular americana, que inebria os amantes da música em todo o mundo. Fora os gênios do Império, não há outro país que possa apresentar algo que rivalize, em extensão e diversidade, com a música brasileira. E, bolo de cereja deste manjar dos deuses, a prova incontestável, a bossa nova.


Ao contrário de outros fenômenos brasileiros, que periodicamente surgem, embasbacam o mundo e a seguir desaparecem, como um tenista que ganha Roland Garros ou Wimbledon, ou um piloto que arrebata os amantes de Fórmula 1, a bossa nova não foi um fenômeno individual e isolado, destacado da sociedade que o gerou. Seu disco seminal, que marcou o início da bossa nova, o de João Gilberto, de 1958 (Chega de Saudade), era o coroamento do trabalho de um músico imerso no cancioneiro nacional. João Gilberto cantava de tudo – era um músico popular até a medula dos ossos - até um comercial da Brahma Chopp ele fez, mostrando sua versatilidade -, e esta revolução musical desencadeada por ele arrastou os músicos que haviam se cansado da mesmice dos bolerões em que a música popular estava imersa, nos anos 50. Foi uma revolução coletiva, na qual despontava um músico de boate, Tom Jobim, que passava as noites tocando jazz e blues para os bêbados de sempre.


Bossa nova, claro, é uma variedade do jazz. Um jazz cool, intimista, que se tornou maior com a parceria de grandes poetas, Vinícius de Moraes, o próprio Tom Jobim, e outros. O jazz, blues e spirituals, fruto da fermentação da cultura negra com a branca, nos Estados Unidos, teve um fruto brasileiro, o que foi quase imediatamente reconhecido pelos músicos do mundo inteiro.


A união dos dois, segundo João Marcelo, o filho da diva, foi a reunião de Apolo e Dioniso: uma, a maior cantora do Brasil, explosiva, orgiástica, com uma disposição de entrega emocional quase sem limites – que se manifestava em sua própria vida pessoal e profissional – e o maior mestre da música intimista, treinado na escola do piano de boate, de fim de noite, das infinitas variedades do jazz, cujo gênio musical havia sido reconhecido pelo maior dos cantores da música popular do mundo, Frank Sinatra, com quem havia gravado, poucos anos antes, um disco com canções só dele, Tom, em uma deferência que Sinatra não havia dado a ninguém.


Este encontro não poderia ter começado de maneira mais desastrada e menos amigável. Elis, naturalmente, pensava em gravar um disco dela, com a participação de Tom. Para Tom, naturalmente, o disco seria dele, e Elis seria sua crooner (estou exagerando um pouco). Tinha tudo para dar errado, e Elis chegou a arrumar as malas para voltar para casa (o disco foi gravado em LA). Mas, quando dois gênios musicais se encontram e se reconhecem como tal, o resultado somente poderia ser este: um disco emocionante, que, cinquenta anos depois, continua inteiro e impecável, talvez o melhor dos registros da música popular do século XX.


Ao vê-los, no filme, ou ouvindo-os, no disco, pensamos: Talvez Deus tenha tido piedade de nós, talvez ainda tenhamos uma chance. No Dia do Juízo Final, se formos perguntados se o Brasil tem direito à existência, bastará lembrar de Elis e Tom cantando Águas de Março, e com certeza seremos perdoados.


Tom Jobim, conta Ruy Castro no livro Chega de Saudade (que você deve ler se quiser saber o mínimo sobre a bossa nova), estava no Bar Veloso tomando chope, quando Armênio, o dono, o chamou e disse: “Ligação dos Estados Unidos”. Era Frank Sinatra, convidando-o para gravar um disco. Em 1966. Assim, quando Elis Regina chegou a LA, oito anos depois, ela foi recebida por um deus apolíneo que havia sido santificado pelo próprio Apolo da canção popular, Frank Sinatra. E ela, como Sinatra antes, se curvou ao seu gênio. Ela nunca fizera um disco tão bom, e nunca mais faria. Quem entende do assunto diz que seu modo de cantar mudou, graças a Tom.

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