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Foto do escritorHatsuo Fukuda

VIOLÊNCIA E PAIXÃO

Ouçam com atenção o que vou lhes dizer: o homem mais forte que há no mundo é o que está mais só.


Free image por Pixabay


O penúltimo filme de Luchino Visconti recebeu este título provavelmente na tentativa de atrair incautos mais afetos a bangue-bangues italianos, em voga nos anos 60. Muito mais adequado foi o título em inglês, Conversation Piece, ou em italiano, Gruppo di famiglia in un interno. Conversation Piece é um tipo de pintura de personagens em um panorama campestre ou familiar, entretido em conversações pacíficas. (Algo que se perdeu nestes tempos de desconfiança política e interação digital). O personagem principal, o Professor, interpretado por Burt Lancaster, vive em um Palazzo em Roma, cercado por objetos de arte e livros, ouvindo Mozart. Esta torre de marfim na qual vive o Professor – personagem espelhado no próprio Visconti, segundo Lancaster – é invadida por uma família moderna, constituída por uma aristocrata, Marquesa Bianca (Silvana Mangano), seu amante, Konrad (Helmut Berger), sua filha Lietta e o namorado da filha, Stefano. Esta família disfuncional traz ao Professor e ao seu mundo idealizado ondas de choque contemporâneo, por um lado, e por outro desnuda a solidão que havia escolhido como modo de vida. Em determinado momento ele diz, explicando seu modo de vida: “Uma águia voa sozinha, os urubus voam em bandos.

Pretensioso. Mas os olhos doces de Burt Lancaster transformam o esnobismo em uma declaração sincera de um estilo de vida.

O contraste entre o Professor, com sua existência reclusa e intelectual, e a nova família se evidenciam nos licenciosos hábitos sexuais (ao som de Roberto Carlos, para alegria dos seus fãs), nas ligações políticas dúbias de Konrad (origem na esquerda de 1968, conexões com traficantes ou a polícia), tudo evidenciando um gap de gerações, costumes e visões políticas e individuais.

O filme foi lançado em 1974, o que significa que todo o furdunço estudantil de 1968 e seus frutos venenosos, como as Brigadas Vermelhas (criada em 1970), já tinham sido vistos por artistas e intelectuais como Visconti. Este era um dos mais importantes cineastas italianos (o mais importante de todos, na minha opinião) e, como membro do Partido Comunista Italiano, poderia ser o protótipo do intelectual orgânico gramsciano – se tivesse produzido apenas Rocco e seus Irmãos e permanecido nas linhas do neo-realismo italiano.


Mas Visconti era um pouco mais complexo do que o intelectual do Partido. Aristocrata, com uma longa fileira de antepassados ilustres, aderira ao Partido Comunista durante a guerra, onde teve uma atuação destacada (quase foi fuzilado por suas atividades partigiani). Seu homossexualismo já fora assumido na juventude. Não precisava provar nada a ninguém, muito menos hastear bandeiras.


Se o Professor se inspirou em Visconti, como disse Lancaster, neste caso, quando o Professor diz que intelectuais de sua geração buscaram um equilíbrio entre a política e a moralidade, “uma busca impossível”, a frase revela o pensamento do próprio Visconti, um testemunho do fracasso de sua geração (criada na luta contra o fascismo) em meio à tempestade irracional que estava se gestando. Atentados a bomba (mais de cem) foram atribuídos ora à esquerda, ora à direita. Aldo Moro seria assassinado em 1978 pelas Brigadas Vermelhas. Visconti, que morreu em 1976, não chegou a ver a morte do político, nem o atentado à Estação de Bolonha, que matou 85 pessoas e feriu mais de 200. Grupos de esquerda e de direita rivalizavam nos atentados, rompida toda e qualquer forma de diálogo.


O filme retrata essa desolação. Os jornais traziam péssimas notícias, e notícias piores ainda viriam. Mas Visconti, como testamento, deixou no ar a lembrança de tempos mais amenos, onde famílias e amigos poderiam se reunir e conversar, pacificamente. Alguns ao som de Mozart, outros, de rock and roll. Nós, neste ex-paraíso tropical, onde reinam o ódio político e ululam ameaças reais e digitais, podemos dançar ao som de Roberto Carlos.


A intolerância que grassou na Itália naqueles anos 60/70, felizmente debelada, retorna no mundo inteiro em uma escala muito maior, tornando mais atual o filme. Uma coisa espantosa foi a demolidora crítica de Vincent Canby, do New York Times, à época do lançamento do filme: “Um desastre.”. Ele não entendeu nada. A caipirice americana sem pudor e sem freios. A epígrafe é da peça Um Inimigo do Povo, de Ibsen. Na cacofonia que se transformou (ou sempre foi) a vida pública no Brasil, só nos resta lamber as ilusões de civilidade na solidão de nossas tocas. Se você tiver uma.


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