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Foto do escritorHatsuo Fukuda

ZUMBIS, MORTOS-VIVOS E VAMPIROS

Uma breve resenha sobre a evolução do tema na sétima arte...


Lá vou eu de novo macular meu prestígio intelectual. Certa vez, fui a uma locadora de vídeos cult atrás do filme The Omega Man, com Charlton Heston. Gosto de circular pelas prateleiras de livrarias, bibliotecas, e, claro, das locadoras de vídeo, antes da era do streaming. Depois de algum tempo, como não achava o filme, falei com um funcionário, que mal disfarçou o seu desprezo pela minha busca. Tantos Visconti, Bergman, e Buñuel nas prateleiras e o coió procurando um filme do Charlton Heston? Daquele canastrão? (Isso dói, sabiam? Já não basta não ter carteirinha do clube dos cinéfilos cult? E se eu tivesse pedido Os Dez Mandamentos ou Ben-Hur o que é que tem? Rato de cinema também é gente.)


Na época havia sido lançada a terceira versão cinematográfica de I Am Legend, história de Richard Matheson, desta vez com Will Smith e com a deliciosa Alice Braga (meu Deus, como amo esta mulher!), e eu, como um bom pai, achei que seria uma boa idéia assistir junto com meu então adolescente filho Leonardo ambas as versões. Lembro-me que quando assisti The Omega Man no cinema quase saí da sala de maca, direto para o Pronto Socorro. Um filmezinho bem lúgubre, digamos assim. Humilhado pelo atendente cult, mesmo assim voltei saltitante para casa, pensando em Alice Braga. Quem não fica feliz pensando em Alice Braga não merece ser feliz.


A verdade é que filmes de zumbis entraram no main stream, com direito a superastros como Will Smith e Brad Pitt (este em Guerra Mundial Z), ou a deslumbrante Milla Jovovich da franquia Resident Evil. Foram-se os tempos em que filmes de zumbi eram produções B, com diretores obscuros e atores mais obscuros ainda (sem contar os figurantes zumbis). A espertíssima indústria de entretenimento coreana, que emula Hollywood e o mundo com competência, lançou o ótimo Invasão Zumbi. Cito estes filmes porque todos estão disponíveis na Netflix. Se você não os assistiu, não deixe de ver. Se assistiu, assista de novo. É ótimo para os tempos claustrofóbicos que estamos vivendo.


Falando em cinema coreano e zumbis, também na Netflix há uma série, já com duas temporadas, seis episódios cada uma, Kingdom. Esta tem o bônus adicional de contar com a atriz Bae Doona (de Sense 8), outra das minhas paixões.


Entre os entendidos discute-se a diferença entre mortos-vivos e zumbis. Quem estiver interessado, uma rápida busca na rede e você estará apto a produzir uma tese sobre o apaixonante tema. Passo. Estou mais intrigado em ver as diferenças entre os zumbis de antigamente e os de hoje. Por antigamente me refiro ao hoje clássico Night of the Living Dead, de George Romero, lançado em 1968, dizem (assim rezam a lenda e os sites e blogs), produzido com 100 mil dólares. Mesmo considerando o valor do dólar de 1968, é pouco, muito pouco. Os zumbis de antigamente moviam-se lentamente e, de quebra, guardavam algumas habilidades. Vê-se um zumbi usando uma pedra para quebrar uma vidraça, por exemplo. Outro: carne assada é uma iguaria zumbi; nada disso se vê nos filmes mais recentes. A velocidade talvez seja a modificação mais vistosa: os zumbis de hoje se movem em bandos compactos e correm alucinadamente em direção aos vivos, amontoando-se nos muros e cercas até derrubá-las ou ultrapassá-los, uns em cima dos outros. Os zumbis de George Romero se movem lentamente e aos poucos se juntam em torno da presa ou do local onde a presa está. (Eles se movem lentamente, podemos passar por eles, diz Barbara, a personagem de Patricia Tallman).


George Romero, que, como todo artista tinha preocupações mundanas, como pagar o aluguel e pensões de ex-esposas (estou chutando, mas ele foi casado três vezes), além, é claro das famosas preocupações artísticas, refez Night of the Living Dead em 1990, com pequenas alterações em relação ao original, entregando a direção para Tom Savini. Antes disso, Savini havia trabalhado em outros filmes de Romero, criando os efeitos de mutilação e sangue (aliás, inspirados por sua passagem no Vietnã, onde serviu durante a guerra). E mostrando como a fila anda, Savini tem participações em filmes de Tarantino e Robert Rodrigues: From dusk till dawn e Machete. Diversão na veia. Naturalmente está recheado de citações aos filmes de Romero.


Roger Ebert, o falecido crítico, costuma ser minha referência em filmes. Normalmente, suas críticas me parecem definitivas. Mas nem sempre. No caso, seu comentário ao filme (o primeiro) concentrou-se na observação da platéia, de crianças e adolescentes na maioria. O filme havia sido lançado antes do código de idade da MPAA, Motion Picture Association of America, e na platéia havia muitas crianças que saíram do cinema em lágrimas, chocadas com seu final inesperado para os padrões até então usuais em filmes do gênero. Ele deu ao filme 3 estrelas e ½, de um máximo de 4. À segunda versão, foi mais econômico (1 estrela), além de esmagar o filme com a observação que o remake é tão próximo do original que não há razão para assistir ambos. Você pode conferir os comentários no site rogerebert.com, que sobreviveu ao seu criador e continua criticando e noticiando os filmes.


Ora, nós adoramos remakes. Além disso, o que seria da indústria cinematográfica não fossem as releituras e atualizações de filmes antigos? Sem pensar, lembraria de inúmeras refilmagens, muitas delas dos próprios criadores originais, todas merecendo ser assistidas, em maratona.


Mas ele tem razão em um ponto: o segundo filme não é melhor do que o primeiro. Provavelmente a fotografia em preto e branco, a linguagem mais enxuta e crua fizeram a diferença. Entre as diferenças, ignoradas pelo crítico, provavelmente porque não é sua seara, estão as explícitas citações de natureza política.

Vou aqui entrar em uma seara conflituosa, num país imberbe e inculto acostumado a ver tudo em branco e preto: vou me aventurar a uma discussão política, sabendo que provavelmente meus cinco leitores vão discordar de mim com paus e pedras. Em 1968, ano em que o filme foi lançado, o país estava imerso até o pescoço na Guerra do Vietnã. As cenas finais, em que as forças da lei e da ordem saem caçando mortos-vivos, lembram explicitamente os conflitos entre a polícia e os protestos antiguerra e as operações de search and destroy contra os vietnamitas. (Essa expressão é usada no filme. Para isso, o documentário sobre o Vietnã de Ken Burns e Lynn Novick.) A postura das mulheres do filme é de uma abjeta sujeição aos seus machos, conformadas aos papéis tradicionais de mãe, esposa, filha e irmã. O conformismo é o caldo de cultura deste mundo de horror. A trilha sonora são seus gritos histéricos diante do desconhecido. O racismo é o pano de fundo óbvio: o personagem principal, Ben (Tony Todd), é um negro, rodeado por um mar de caipiras brancos boçais, mortos ou vivos. A árvore de mortos-vivos é uma citação explícita aos estranhos frutos das árvores do Sul, que Billie Holiday cantava:


Southern trees bear strange fruit,

Blood on the leaves and blood at the root,

Black bodies swinging in the southern breeze,

Strange fruit hanging from the poplar trees.


A refilmagem torna mais explícita a “mensagem”, adequando-a a um mundo que evoluiu, mas pouco: Barbara fortalece-se na luta, abandonando suas saias e medos, constatando que “Eles são nós, e nós somos eles”. No meio do caminho talvez tenha queimado o soutien. A fotografia realça sua beleza determinada. A bandeira americana tremula sobre os mortos e os vivos.


Os filmes disponíveis na Netflix: Eu sou a lenda, Guerra Mundial Z, Noite dos mortos vivos (2.ª versão), Residente Evil, From Dusk Till Dawn, The Kingdom. Idem o documentário sobre o Vietnã de Ken Burns e Lynn Novick. Caso você queira assistir a primeira versão de George Romero, você a encontrará no Youtube. Machete, de Robert Rodrigues, você encontra na Globoplay. A Versátil Home Vídeo tem disponível ambas as versões da Noite famosa, bem como outros filmes de Romero.

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